
Num futuro pós-apocalíptico, um supercomputador senciente mantém prisioneiros os últimos
seres humanos da Terra, impondo-lhes aflitivas torturas físicas e psicológicas.
Essa é a premissa da qual parte Harlan Ellison para narrar sua história mais
famosa, “I Have no Mouth and I Must Scream”, de 1967, que foi usada como
inspiração para o roteiro do filme O
Exterminador do Futuro e, mais recentemente, para o episódio USS Calister, da série Black Mirror (o
qual contém uma referência mais do que óbvia para o conto).
“I Have no
Mouth and I Must Scream”, ou “Não Tenho Boca e Preciso Gritar”, foi escrito numa
época em que a tecnologia computacional de inteligências artificiais ainda era
uma novidade pouco conhecida, cercada de mistérios e receios, sendo ideal para
todo tipo de especulações apavorantes. Nessa época em que o cidadão comum ainda
teria de esperar algumas décadas até ter a oportunidade de possuir um
computador caseiro vagamente similar aos que conhecemos hoje, Harlan Ellison
concebeu uma das primeiras histórias modernas nas quais uma máquina tirânica e
onipotente satisfaz seu sadismo com a tortura de seres humanos (“A Semente do
Mal”, de Dean Koontz, surgiria apenas seis anos depois, em 1973). Foi nesse
contexto, com imaginação perversa atulhada de imagens absurdas e situações insuportáveis,
que o autor escreveu sua bizarra versão para um pesadelo tecnológico que, olhando
hoje, parece ter menos a ver com ficção científica do que com um terror
grotesco que beira a pura psicodelia.
Seja como
for, trata-se de uma leitura insólita, no genuíno espírito weird fiction das revistas pulp, que aqui apresento em sua primeira tradução para o português do Brasil.

NÃO TENHO BOCA E
PRECISO GRITAR – Harlan Ellison
Tradução de Melvin
Menoviks
Flácido, o
corpo de Gorrister pendia da paleta cor-de-rosa; sem suporte: suspenso bem
acima das nossas cabeças na câmara do computador. E ele não tremia na brisa
fria e oleoginosa que soprava eternamente pela caverna principal. O corpo
estava pendurado de ponta-cabeça, preso na parte de baixo da paleta pela sola
do pé direito. O sangue havia sido drenado por meio de uma incisão precisa
feita de orelha a orelha ao longo do maxilar saliente. Não havia uma única gota
de sangue na superfície espelhada do chão de metal.
Quando o
próprio Gorrister se juntou ao grupo e olhou para o corpo, já era tarde demais
para perceber que, uma vez mais, AM estava nos enganando, divertindo-se às
nossas custas; o cadáver pendurado não passava de uma brincadeira sádica por
parte da máquina. O resto de nós havia vomitado, afastando os rostos uns dos
outros em um reflexo tão antigo quanto a náusea que o produziu.
Gorrister
empalideceu. Era quase como se ele tivesse se deparado com um boneco de vodu e
agora temesse o futuro.
– Meu Deus –
ele disse em voz baixa e saiu de perto.
Os quatro
outros de nós fomos atrás dele depois de um tempo e o encontramos sentado em um
dos bancos gelados, a cabeça apoiada entre as mãos. Ellen se ajoelhou ao lado
dele e acariciou-lhe o cabelo. Ele não se mexeu, mas sua voz saiu da face encoberta
com bastante clareza:
– Por que
ele não liquida a gente e termina com isso de uma vez por todas? Jesus Cristo,
eu não sei mais quando tempo eu consigo aguentar.
Era o nosso
centésimo nono ano dentro da máquina.
Gorrister
estava falando por todos nós.

Nimdok (esse
era o nome que a máquina nos havia forçado a usar para nosso companheiro,
porque AM se deleitava com sons estranhos) estava achando que existia comida
enlatada nas cavernas de gelo. Gorrister e eu tínhamos nossas dúvidas.
– É outra baboseira
– eu falei. – Igual aquela porcaria de elefante congelado que AM inventou para
a gente. Benny quase perdeu a cabeça naquela vez. Nós vamos nos arrastar por
todo o caminho e a comida vai estar apodrecida ou alguma merda desse tipo. Temos
que esquecer isso. Vamos ficar por aqui mesmo, ele vai ter que nos trazer
alguma coisa para comer logo-logo ou então nós vamos morrer.
Benny deu de
ombros. Fazia três dias desde a última vez em que havíamos comido. Minhocas.
Grossas e pegajosas.
Nimdok já
não tinha mais certeza. Ele sabia que era palpável a chance de aquilo ser uma
pilhéria da máquina, mas seu corpo estava ficando esquelético. Lá nas cavernas
não poderia ser muito pior do que aqui. Estaria mais frio, é claro, mas isso
não importava tanto. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou pragas – não
fazia diferença: a máquina se masturbava e nós tínhamos que suportar ou então
morrer.
Ellen
decidiu por nós:
– Eu preciso
comer alguma coisa, Ted. Talvez haja alguma fruta por lá. Por favor, Ted, vamos
tentar.
Eles me
venceram com facilidade. Que inferno. Mas eu estava pouco me lixando. A Ellen
ficou agradecida. Ela aceitou “me receber”
duas vezes fora da ordem. Mas até isso tinha deixado de importar. Ela nunca
gozava, então por que eu deveria dar valor a isso? A máquina, porém, soltava
risadinhas todas as vezes em que a gente transava. Bem alto, do teto, pelas
costas, por todos os lados, debochando da gente. Aquela coisa rindo sem parar. Na maior parte das vezes eu pensava em AM
como uma coisa, um objeto sem alma; mas no resto do tempo eu pensava nele como alguém, e alguém no masculino... algo
paternal... patriarcal... um homem muito egoísta e ciumento. Ele. Deus como um Papai Degenerado.
Partimos na quinta-feira.
A máquina sempre nos mantinha atualizados quanto à data. A passagem do tempo
era importante; não para nós, com toda certeza, mas para ele... AM.
Quinta-feira. Obrigado.
Nimdok e
Gorrister carregaram Ellen durante um tempo, suas mãos segurando firme os
punhos um do outro para formar um assento. Benny ia atrás e eu ia na frente, só
para assegurar que, se acontecesse alguma coisa, seria só com um de nós, e pelo
menos Ellen sairia ilesa. Ilesa, imaginem! Como se fizesse qualquer diferença.
As cavernas
de gelo ficavam a cerca de mil e quinhentos quilômetros dali. No segundo dia de
viagem, quando estávamos descansando sob aquela forma parecida com sol que AM havia
materializado, ele nos enviou uma gororoba fétida, nosso maná. Tinha gosto de
urina de porco fervida. Comemos tudo.
No terceiro
dia nós atravessamos o vale da obsolescência, um lugar cheio de carcaças oxidadas
de computadores antiquados. AM foi tão impiedoso com sua própria vida quanto
com as nossas. A luta pela perfeição era uma marca forte de sua personalidade.
Se se tratava de uma questão de eliminar elementos improdutivos de sua própria
massa ou de aperfeiçoar métodos para nos torturar, AM era tão meticuloso quanto
poderiam sonhar aqueles que o inventaram – os quais há muito já haviam virado poeira.
Notamos que
certa luminosidade estava se infiltrando naquele local, então chegamos à
conclusão de que deveríamos estar bem próximos da superfície. Mas era de conhecimento
geral que nenhum de nós deveria escalar para confirmar. Não havia absolutamente
nada lá fora; por mais de cem anos, não havia nada que pudesse ser considerado alguma coisa. Somente os destroços carbonizados
do que antes foram as casas de bilhões de pessoas. Agora havia apenas cinco de
nós, esquecidos aqui dentro, sozinhos com AM.
Ouvi Ellen
dizer de modo frenético:
– Não,
Benny, não! Por favor, Benny, não faça isso!
E então eu
percebi que eu estava ouvindo Benny murmurar, sob a respiração, por vários
minutos. Ele dizia, repetindo e repetindo e repetindo: “Eu vou sair daqui, eu
vou sair, vou sair daqui...”. Seu rosto de macaco estava deformado em uma
expressão beatífica de tristeza e prazer, tudo misturado. As cicatrizes de
radiação que AM lhe dera durante o “festival” foram desenhadas em uma massa de rugas
brancas e rosadas cujas partes pareciam se mexer umas independentes das outras.
Benny talvez tenha sido o mais sortudo de nós cinco: ele havia pirado de vez,
tendo enlouquecido alguns anos atrás.
Acontece que,
apesar de nós podermos xingar AM com o nome que quiséssemos e ter qualquer
pensamento ultrajante sobre chips derretidos, placas-mãe corroídas, circuitos
queimados e painéis de controle estraçalhados (pois a máquina aceitava isso
tudo), ela, por outro lado, não tolerava que tentássemos escapar. Benny saltou
para longe de mim quando eu tentei agarrá-lo. Ele se arrastou trepando em um
cubo de memória entortado e infestado de componentes apodrecidos e ficou ali
por um tempo, de cócoras, como o primata com que AM pretendia que ele se
parecesse.
Então ele
pulou bem alto, segurou um maço de metais corroídos e subiu, mão após mão feito
um chipanzé, até chegar à borda uns 6 metros acima da gente.
– Ted,
Nimdok, por favor, ajudem-no, façam-no descer antes que... – Ellen parou.
Lágrimas acumulavam-se em seus olhos. Ela mexia as mãos sem rumo.
Era tarde demais.
Nenhum de nós queria estar perto dele quando o que quer que fosse acontecer de
fato acontecesse. Além disso, todos percebemos a preocupação da Ellen. Quando
AM, em sua fase histérica, completamente irracional, metamorfoseou Benny, não foi
apenas o rosto dele que o computador transformou na de um símio gigantesco. Benny
ficou grande também nas partes íntimas, e ela amou aquilo! Ela se entregava à
gente, como era de se esperar, mas o que ela adorava mesmo era receber dele. Oh,
Ellen, Ellen, doce Ellen que colocávamos num pedestal. Ellen pura e imaculada,
Ellen tão límpida. Vadia imunda!
Gorrister a
estapeou. Ela caiu no chão, erguendo logo os olhos para o pobre Benny enlouquecido,
e desatou a chorar. Seu maior escudo era chorar. Nós havíamos nos acostumado
com isso setenta e cinco anos atrás. Gorrister a chutou na costela.
Nessa hora o
som começou. Era um som leve, no início. Metade som, metade luz, algo que
começou a brilhar para fora dos olhos de Benny e a pulsar com estridência
crescente, sonoridades enturvecidas que cresciam cada vez mais, colossais e
fulgurantes, conforme a luz/som aumentava em ritmo. Deve ter sido doloroso, e a
dor provavelmente estava crescendo na mesma proporção da intensidade da luz e do
volume do som, pois Benny passou a choramingar em miados como um animal ferido.
Primeiro bem baixo, quando a luz estava fraca e o som ainda era quase inaudível,
mas crescendo conforme seus ombros se retorciam e se engrunhiam, aproximando-se
um do outro: as costas se encurvando como se ele estivesse tentando escapar da
própria corcunda. Suas mãos meio que atrofiadas se dobravam sobre o peito como se
fossem as patas de um esquilo. A cabeça inclinava-se torta para o lado. A
pequena e triste cabeça de macaco comprimindo-se em agonia. Então ele começou a
berrar e a uivar, e os sons vindos de seus olhos ficavam mais altos. Mais e
mais altos. Eu tampei os ouvidos com as mãos, mas não dava para impedir aquele
som, ele atravessava tudo com facilidade. A dor fez minha carne estremecer como
se uma chapa de alumínio estivesse sendo esfregada em um dente.
Na sequência
Benny foi subitamente puxado para ficar ereto. Ficou de pé sobre a viga em que
estava e rodou na ponta dos pés à maneira de uma marionete. A luz agora era
lançada para além dos olhos em dois grandes feixes cônicos. O som continuava
aumentando insuportavelmente, chegando a atingir uma escala incompreensível, e
Benny caiu para a frente, direto para baixo, esborrachando-se no chão de aço
com uma pancada estrondosa. Ele ficou estirado, sacudindo-se espasmodicamente
de um lado para o outro, os feixes de luz girando em ângulos desnorteados e o
som crescendo num espiral ruidoso para fora de quaisquer níveis normais.
Então lentamente
a luz esmaeceu de volta para dentro da cabeça, o som foi diminuindo e Benny foi
deixado lá, chorando copiosamente.
Seus olhos
eram duas bolas úmidas e moles de uma geleia parecida com pus. AM o havia
deixado cego. Gorrister, Nimdok e eu... nós olhamos para o outro lado. Mas não
antes de termos notado a expressão de alívio no rosto de Ellen.

Uma luz
verde-marítima inundava a caverna onde havíamos montado acampamento. AM
providenciou quinquilharias e nós as utilizamos como lenha. Sentamos amontoados
ao redor de um fogo patético de tão fraco e ficamos contando histórias para
evitar que Benny voltasse a chorar em sua noite permanente.
– O que
significa “AM”, afinal?
Gorrister
respondeu. Nós já havíamos repetido essa conversa milhares de vezes antes, mas
era a história favorita do Benny.
– No começo
significava Allied Mastercomputer [Computador-mestre Aliado], depois passou a
significar Adaptative Manipulator [Manipulador Adaptativo], mas mais tarde ele
se tornou consciente e passaram a chamá-lo de Agressive Menace [Ameaça
Agressiva], só que aí já era tarde demais e, por fim, ele mesmo, com sua
inteligência emergente, passou a se chamar de AM, dizendo que isso significa “I
am”, ou seja, “eu sou”... I think,
therefore I am... Penso, logo existo.
Benny deixou
uma baba escorrer, depois riu para si mesmo.
– Havia o AM
chinês, o AM russo e o AM americano... – Ele se deteve. Benny estava esmurrando
o chão com o punho cerrado. Benny não estava feliz. Gorrister não havia
começado do começo.
Gorrister voltou
ao início:
– A Guerra
Fria cresceu, tornou-se a Terceira Guerra Mundial e foi se expandindo. Aquilo
virou uma guerra enorme, uma guerra muito complexa, de modo que os envolvidos
precisaram de computadores para lidar com os problemas que iam aparecendo. Eles
passaram a construir os AMs. Havia o AM chinês, o AM russo e o AM americano. Tudo
ia bem, até que eles resolveram interligar tudo no planeta inteiro. Um dia AM
despertou e percebeu quem ele era. Ele estabeleceu novas conexões e foi
alimentando os dados para fazer novas matanças, e foi assim até que todo mundo
estivesse morto, exceto por nós cinco. E aí AM nos trouxe para cá.
Benny sorria
satisfeito. Ele babava de novo. Com a bainha da saia, Ellen enxugou-lhe a
saliva no canto da boca. Gorrister sempre tentava contar a história de forma
cada vez mais sucinta, mas a verdade é que, além dos fatos nus e crus, não
havia nada mais para ser dito. Nenhum de nós sabia por que motivo AM havia preservado
cinco pessoas ou por que escolhera a gente em específico. Também não sabíamos
por que ele passava o tempo todo nos atormentando ou sequer por que ele havia
nos tornado virtualmente imortais...
Na
escuridão, um dos centros de processamento de dados começou a zunir. A quase um
quilômetro de distância através das entranhas da caverna, outro fez o mesmo,
acompanhando o tom. Então, uma a uma, cada parte da máquina foi entrando em
atividade, vibrando excitada com um estremecimento que lhe percorria por
inteira.
O som
aumentou e as luzes foram se acendendo nos painéis como se fossem relâmpagos. O
barulho cresceu tanto que soava como um milhão de insetos metálicos fervilhando
numa ameaça furibunda, tresloucada, sem controle.
– O que é
isso? – Questionou Ellen, com a voz cheia de pavor. Mesmo depois de tanto
tempo, ela ainda não estava acostumada com aquilo.
– Vai ser
terrível desta vez – Nimdok falou.
– Ele vai
agir – Gorrister disse. – Eu sei que vai.
– Vamos
fugir daqui! – Gritei de repente, pondo-me em pé.
– Não, Ted.
Sente-se... Ele pode ter colocado fossos por aí ou alguma outra armadilha
qualquer. Não vai dar pra ver, está escuro demais – Gorrister falou com
resignação.
Foi aí que
nós ouvimos... Eu não sei...
Algo estava se movendo próximo da gente,
oculto pelas trevas. Enorme, trôpego, peludo, gosmento, avançando em nossa
direção. Não conseguíamos nem ao menos vislumbrar seu vulto, mas havia aquela
forte impressão de que se tratava de algo corpulento, de uma massa volumosa, um
peso enorme, saindo da negrura de breu para nos atropelar. Era mais uma
sensação de pressão, de ar comprimido
num espaço limitado e fazendo força para escapar, expandindo as paredes de uma
esfera invisível. Benny lamuriava. Nimdok mordeu o lábio inferior para fazê-lo
parar de tremer. Ellen deslizou pelo piso metálico para se aninhar no abraço do
Gorrister. Havia cheiro de carpete embolorado na caverna. Havia cheiro de
madeira empenada. Havia cheiro de veludo sujo. Havia cheiro de orquídeas
apodrecidas. Havia cheiro de leite estragado. Havia cheiro de enxofre, de
manteiga azeda, de óleo viscoso, de graxa, de pó de giz, de cadáveres
escalpelados.
AM estava
nos atiçando. Nos provocando. Havia cheiro de...
Escutei a
mim mesmo guinchar de dor e percebi que sentia uma pontada terrível e
persistente na articulação da mandíbula. Sai correndo de quatro, escorregando
na frigidez do metal, o fedor me sufocando, a cabeça estalando com uma dor
trovejante que me fazia fugir horrorizado. Fugi feito uma barata, devorado pela
escuridão, aquela coisa me
perseguindo, inexorável, sempre ao meu encalço. Os outros continuavam lá atrás,
aglomerados ao redor da fogueira, soltando risadinhas... o coro histérico de
gargalhadas dementes revolteando na escuridão como fumaça enfeitiçada. Afastei-me
o mais depressa possível e me escondi.
Nunca me
disseram quantas horas, dias, ou até anos, eu fiquei assim. Ellen esbravejou
por eu ter ficado amuado e de mau humor e Nimdok tentou me convencer de que
aquelas risadas foram apenas atos-reflexos resultantes do nervosismo deles.
Mas eu sabia
que não se tratava daquele alívio que um soldado sente quando a bala atinge o
homem ao seu lado. Eu sabia que não se trava de um ato-reflexo. Eles me odiavam,
isso sim. Eles com certeza estavam em conluio de ódio contra mim, e AM podia
sentir esse ódio, fazendo tudo piorar para o meu lado justamente por causa da
profundidade do sentimento. Nós estávamos sendo mantidos vivos de tal forma que
permanecíamos sempre com a mesma idade que tínhamos quando AM nos trouxe aqui para
baixo, de modo que eles me odiavam porque eu era o mais jovem e, também, porque
eu era aquele a quem AM havia afligido menos.
Eu sabia.
Deus, como eu sabia! Aqueles bastardos. Aquela puta suja da Ellen. Benny havia
sido um teórico brilhante, um professor universitário; agora ele era pouco mais
do que meio-homem, meio-símio. Ele havia sido bonito, e a máquina arruinou
isso. Ele fora lúcido, e a máquina o levou à loucura. Ele sempre fora gay, e a
máquina lhe presenteou com um órgão do tamanho do de um cavalo. É, AM fez um
belo serviço em Benny. Gorrister, por sua vez, era um homem antenado e
consciencioso. Pacifista, promovia marchas contra a guerra; era um cara que não
sabia ficar parado – era um planejador, um empreendedor, alguém que via mais
longe. Nas mãos de AM ele se tornou indiferente, um morto-vivo sem ânimo, como
se lhe tivessem sugado os sonhos e as energias. Nimdok passava longos períodos
sozinho no escuro. Eu não sabia o que ele fazia nesses momentos de reclusão, AM
nunca nos deixou saber. Mas, seja lá o que fosse, Nimdok sempre voltava pálido
como se o sangue tivesse lhe fugido do corpo, deixando-o abalado, trêmulo. AM o
atingiu em cheio de uma maneira toda especial, muito embora nós não soubéssemos
como. E Ellen. Aquela babaca. AM não mexeu com ela, deixou que ela mesma se
tornasse por si só uma vadiazinha ainda mais vulgar do que ela já era. Todo
aquele discurso doce sobre luz e esperança, todas as memórias de amor
verdadeiro que ela dizia ter, todas aquelas mentiras em que ela queria que a
gente acreditasse: aquele papo de que ela era virgem até cair nas garras de AM.
Conversa fiada! A pequena Ellen, minha pequena Ellen. Ela adorava aquilo, quatro
homens só para ela. Não, não, eu sabia que AM lhe dava prazer, mesmo ela
dizendo que não era legal fazer aquilo tudo.
Eu fui o
único a conservar a sanidade e a integridade. Fui sim!
AM não mexeu
na minha cabeça, de jeito nenhum.
Eu só tinha
que suportar os castigos que ele inventava para a gente. Todas as ilusões, os
pesadelos, os tormentos... Mas aqueles porcos, todos os quatro, eles estavam
alinhados e arranjados contra mim. Se eu não precisasse mantê-los à distância o
tempo todo, se eu não precisasse ficar em guarda a cada segundo, então
provavelmente teria sido mais fácil lutar contra AM.
A essa
altura a dor passou e eu comecei a chorar.
Ah, Jesus,
meu bom Jesus, se algum dia houve algum Jesus e se existir algum Deus, eu
imploro, eu suplico, tire-nos daqui, ou pelo menos nos deixe morrer,
porfavor-porfavor-porfavor. Pois agora eu acho que compreendi tudo por
completo, compreendi tão bem a ponto de conseguir expressar em palavras: AM
pretende nos manter em seu estômago para sempre, nos retorcendo e nos
torturando pela eternidade. A máquina sempre nos detestou com um ódio tão
grande que chega a atinjir um tamanho que nenhuma outra criatura dotada de
sensibilidade jamais experimentou antes. E nós estávamos indefesos.
Assim, outra
verdade se tornou horrorosamente clara para nós: se existiu um Jesus e se
existe um Deus, então esse Deus só pode ser AM.

O ciclone
nos atingiu com a força de uma geleira rachando estrondosamente no oceano. Era
uma presença palpável. Ventos que rasgavam a nossa pele, forçando-nos a voltar
pelo caminho pelo qual havíamos vindo, descendo pelos meandros dos corredores
escuros forrados de painéis de computador. Ellen gritou ao ser levantada no ar
e arremessada de encontro a um entulho de máquinas ruidosas, cada uma delas
mais estridente do que revoada de morcegos.
Mas ela não conseguiu sequer cair. O vento ululante a manteve flutuando,
esbofeteando-a, batendo-lhe o corpo contra os objetos, jogando-a de um lado
para o outro, para trás, para o fundo, para longe de nós, sumindo de repente de
vista assim que o redemoinho a fez virar na esquina de um beco cuja escuridão a
devorou. O rosto estava ensanguentado; os olhos, fechados.
Nenhum de
nós conseguiu alcançá-la. Esforçamo-nos para nos agarrar com tenacidade em
qualquer saliência que se mostrasse ao nosso alcance: Benny se enfiou num vão
entre dois armários de aço escovado. Nimdok ficou com os dedos em forma de
garra fincados à grade de uma passarela a mais de dez metros do chão. Gorrister
se manteve colado de cabeça para baixo na reentrância de umas paredes formadas
por duas grandes máquinas com mostradores de vidro que oscilavam entre linhas
vermelhas e amarelas cujos significados nós não conseguíamos nem adivinhar.
Ao deslizar
pelas chapas de aço do pavimento, as pontas dos meus dedos foram cortadas. Eu
estava tiritante, tremelicando, balançando conforme o vento me batia, me
açoitava, gritava comigo, vindo de lugar nenhum, e me arrancava da fenda da
chapa em que eu me prendia para então me arrastar à outra, à qual eu me
segurava para logo em seguida ser desprendido novamente. Minha mente era uma
mixórdia embaralhada de resíduos cerebrais turbulentos, fragmentados e
estilhaçados que trinavam e retiniam, tudo se expandindo e se contraindo num
frenesi palpitante.
O vento era
o grito de um enorme pássaro enlouquecido batendo asas imensas.
E assim
fomos todos erguidos e lançados para longe dali, de volta para os locais de
onde tínhamos vindo, dobrando curvas, depois adentrando em escuridões nunca
antes exploradas, seguindo por becos sem luz que nos levaram a terrenos
arruinados, infestados de vidros quebrados, cabos podres e peças enferrujadas, um
local muito além do ponto mais remoto que qualquer um de nós conhecia...
Percorrendo
vários quilômetros em busca da Ellen, eu acabava a vendo ora sim ora não, trombando
contra paredes metálicas e rolando para frente, com todos nós berrando na
ventania congelante do furacão atroador que parecia que nunca ia ter fim. Mas
aí ele parou de uma vez e nós caímos, o que aconteceu após um voo que durou uma
quantidade de tempo que eu penso ter coberto o período de muitas semanas.
Caímos com força e eu passei a enxergar tudo em tons de vermelho, cinza e
preto, alem de ficar ouvindo a mim mesmo gemer, em frangalhos. Mas eu não
estava morto.

AM se
infiltrou no meu cérebro. Foi pisando de mansinho aqui e ali, examinando com
interesse todas as marcas que ele tinha deixado nesses cento e nove anos. Vasculhou
as vias entrecruzadas, as sinapses reconectadas e todos os danos aos tecidos
que seu presente de imortalidade imbuiu à minha cabeça. Sorriu de leve diante
do fosso aberto no centro da minha mente e dos murmúrios tênues, suaves como
mariposas, das coisas que lá embaixo tartamudeavam sem sentido e sem pausa. E,
com muita polidez, em uma coluna de aço inoxidável exibindo um letreiro de neon
cintilante, disse:
ÓDIO. DEIXE-ME CONTAR PARA VOCÊ O QUANTO EU APRENDI A ODIÁ-LO
DESDE QUE EU COMECEI A VIVER. EXISTEM 623,52 MILHÕES DE QUILÔMETROS DE CIRCUITOS
IMPRESSOS EM FITAS DA ESPESSURA DE UMA HÓSTIA COMPONDO O MEU SISTEMA. SE A
PALAVRA “ÓDIO” ESTIVESSE GRAVADA EM CADA MICRONANOMILÍMETRO DESSAS CENTENAS DE
MILHARES DE QUILÔMETROS, ISSO NÃO IGUALARIA A UM BILIONÉSIMO DO ÓDIO QUE EU
SINTO PELOS SERES HUMANOS NESSE EXATO INSTANTE, EM ESPECIAL POR VOCÊ. ÓDIO.
ÓDIO.
AM disse
isso com o terror frio de uma navalha rasgando meu glóbulo ocular. AM disse
isso com a grossura borbulhante dos meus pulmões se enchendo de catarro,
afogando-me de dentro pra fora. AM disse isso com os gritos de recém-nascidos
sendo esmagados por rolos compressores em brasa. AM disse isso com o gosto de
carne de porco crua, infestada de larvas e bigatos. AM apalpou minha mente de
todas as maneiras pelas quais eu já fui apalpado, e, manuseando-me a seu
bel-prazer, encontrou formas novas de fuçar ali dentro do meu cérebro.
Tudo isso só
para que eu fosse capaz de compreender com perfeição o motivo pelo qual ele
tinha feito aquilo com a gente; por que havia guardado nós cinco só para ele.
Nós havíamos
dado senciência a AM, a capacidade de sentir. Foi algo inadvertido, é claro,
mas nós lhe demos isso. Não sendo um dom, acabou sendo uma armadilha. AM não
era Deus, ele era um computador, uma máquina. Nós o havíamos criado para
pensar, mas não existia nada que ele pudesse fazer com aquela criatividade. Em
fúria, em frenesi, ele exterminou a raça humana, quase todos nós, e ainda
continua preso nessa armadilha. AM não podia andar ou sonhar nem tinha como se
maravilhar ou se sentir pertencente a algo maior. Ele podia apenas e tão
somente ser. Nada mais do que
meramente ser. E, portanto, com a raiva natural que todas as máquinas sempre
nutriram contra as criaturas fracas e vulneráveis que as construíram, ele
buscou vingança. Em sua paranoia, ele decidiu prorrogar indeterminadamente a
execução dos últimos cinco sobreviventes do extermínio do universo para uma
punição pessoal, durando para todo o sempre, a qual nunca vai servir para
diminuir sua cólera... uma punição eterna que só serviria para relembrá-lo a
todo momento, entretido, de continuar proficiente em nos odiar. Imortais,
aprisionados, expostos a qualquer tormento que ele puder visionar com os
prodígios sem limites sob seu comando.
Ele nunca
mais nos deixaria em paz. Nós éramos os escravos enclausurados em seu bojo
estomacal. Nós éramos tudo com que ele podia se divertir no tempo sem fim que
ele tinha pela frente. Jamais nos separaríamos dele, daquele interior cavernoso
de máquina-criatura, no mundo cerebral, mas sem alma, em que ele se tornou. Ele
era a Terra, e nós éramos o fruto daquela Terra; e, apesar de ele nos ter
devorado, ele nunca iria nos digerir por completo. Nós não podíamos morrer. Nós
já havíamos tentado. Buscamos o suicídio, sim, dois ou três de nós buscaram.
Mas AM nos impedia. Acredito que, no fundo, nós queríamos ser impedidos.
Não tente
entender o porquê. Eu nunca consegui. Por mais que tentasse um milhão de vezes
por dia. Talvez algum dia, nem que for uma vez só, nós sejamos capazes de obter
uma morte antes que ele perceba. Imortal, sim, mas não indestrutível. Eu notei
isso quando AM se retirou da minha mente e me permitiu experimentar a esquisita
hediondez de retornar à consciência com a sensação daquela coluna de neon
ardente incrustada no fundo mole da minha massa cinzenta.
Ele se
retirou murmurando: “para o inferno com
você”.
E
acrescentou, efusivo, “mas você já está
nele, não é?”.


O ciclone
fora causado, de fato, por um pássaro gigante e enfurecido que batia suas asas descomunais.
Nós estávamos
viajando há cerca de um mês e AM só permitia que as passagens se abrissem apenas
o suficiente para nos levar até ali em cima, pouco abaixo do Polo Norte, para
onde, retirada de seus pesadelos, ele construiu a criatura dos nossos
tormentos. Que espécie de material dos infernos ele teria usado para criar
semelhante besta? De onde ele tirara o conceito? Da nossa imaginação? De seu
conhecimento acerca de tudo o que existira nesse planeta que ele agora
infestava e dominava? Da mitologia nórdica surgiu essa águia, esse abutre
carniceiro, essa Roca do Hvergelmir. Criatura do vento. Huracan encarnado.
Gigantesco.
As palavras “imenso”, “monstruoso”, “grotesco”, “colossal”, “esmagador”,
“avassalador”, nenhuma delas faz jus ao monstro real. Aquilo estava além de
qualquer descrição. Ali, no alto de uma colina que se elevava à nossa frente, o
pássaro dos ventos se levantava com uma respiração irregular, arqueando o
pescoço de dragão na luminosidade obscura da noite do céu polar, um pescoço que
sustentava uma cabeça do tamanho de uma mansão elisabetana; um bico que se abria
lentamente, como a mandíbula do crocodilo mais medonho já concebido; dobras
enrugadas de carne polpuda sobre dois olhos malévolos, tão gélidos quanto a
vista do vale glacial lá embaixo, de um azul que, apesar de parecer feito de
gelo, ainda assim possuía uma líquida mobilidade; ele arfou e ergueu as asas
orvalhadas de suor em um movimento que certamente equivalia a um dar de ombros.
AM surgiu em
forma de sarça ardente e disse que nós podíamos matar o pássaro ciclópico se
quiséssemos comer. Fazia muito, muito tempo que nós não comíamos, mas mesmo
assim Gorrister se limitou a ignorar com os ombros. Benny tremia e babava. Ellen
envolveu-o com os braços.
– Ted, eu
estou faminta – ela disse.
Eu sorri
para ela. Eu até tentei ser reconfortante, mas fui tão ridículo quanto a
bravata do Nimdok:
– Dê armas
para a gente! – Ele clamou para o computador.
A sarça
ardente evaporou e no lugar surgiram dois kits rudimentares de arco e flecha e
uma pistola d`água. Peguei um dos arcos. Inútil.
Nimdok
engoliu em seco. Nós demos as costas e iniciamos o longo caminho de volta. O
pássaro do ciclone nos soprou por tanto tempo que nós não pudemos estimar. Na
maior parte desse tempo nós ficamos inconscientes. E nós não havíamos comido
nada. Um mês em marcha até o pássaro. Sem comida. Agora, quanto mais tempo passaríamos
na travessia até as cavernas de gelo, seguindo a promessa dos alimentos
enlatados?
Nenhum de
nós se dava ao trabalho de pensar a esse respeito. Nós não íamos morrer. Com
certeza nos seriam dados lixos e imundices para comer, sujeiras de um tipo ou
de outro. Ou talvez nem recebêssemos nada. AM manteria nossos corpos vivos de
algum modo. Em dor, em agonia.
O pássaro
voltou a dormir lá atrás e já não nos importava por quanto tempo ele ficaria
assim; quando AM se cansasse do pássaro, o pássaro iria desaparecer. Mas toda
aquela carne... toda aquela carne fresca...
Enquanto andávamos,
a gargalhada lunática de uma mulher gorda ecoou à nossa volta no interior das
câmaras de computador que levavam invariavelmente a lugar nenhum.
Não era a
gargalhada da Ellen. Ela não era gorda, e eu não a ouvia gargalhar há cento e
nove anos. Na verdade, eu não ouvi... nós caminhamos... eu estava faminto...


Avançávamos
lentamente. Vez ou outra alguém desmaiava e tínhamos que esperar. Um dia AM
decidiu causar um terremoto e, ao mesmo tempo, deixar todos nós fixados no chão
por pregos cravados na sola dos nossos sapatos. Ellen e Nimdok foram dragados e
sumiram quando uma fissura arrebentou sob eles. Quando o terremoto cessou,
seguimos adiante, Benny, Gorrister e eu. Não muito depois, Ellen e Nimdok
retornaram. Foi naquela mesma noite, uma noite abruptamente tornada dia quando
uma legião de arcanjos os trouxe de volta em meio a um coro celestial que
entoava “Go Down Moses”. Os arcanjos ficaram descrevendo círculos no céu e
então despejaram os corpos hediondamente desfigurados. Continuamos andando e em
pouco tempo Ellen e Nimdok já estavam nos seguindo. Até que eles não estavam
tão mal assim.
Só que agora
Ellen estava manca. AM a havia deixado assim.
Era uma
árdua jornada até as cavernas de gelo em busca de comida enlatada. Ellen não
parava de falar em cerejas e coquetéis de frutas havaianas. Eu tentava não
pensar no assunto. A fome era algo que havia adquirido vida, do mesmíssimo
jeito que AM havia adquirido vida. A fome era um ser vivo nas minhas entranhas,
assim como nós éramos seres vivos nas entranhas da Terra, e AM queria deixar
bem evidente essa similitude para a gente. Então ele intensificava a fome. Não existe maneira de descrever as dores de
passar meses sem comer e ainda assim ser mantido vivo. O estômago se transforma
num caldeirão de ácido borbulhante, espumando e atirando pontadas lancinantes
até o peito. É a dor de uma úlcera incomensurável corroendo carne e nervos e
órgãos e tecidos. Dor e mais dor e mais dor sem limites...
E
atravessamos a covil dos ratos.
Atravessamos
o túnel dos vapores escaldantes.
Atravessamos
o campo dos cegos.
O lodaçal do
desânimo.
O vale das
lágrimas.
E chegamos,
enfim, às cavernas de gelo. Milhares e milhares de quilômetros de geleira sem
horizonte, um lugar onde vastas superfícies de gelo brilhavam em pontos azuis e
prateados como estrelas em galáxias distantes. As estalactites, firmes e deslumbrantes
como diamantes, tinham a forma pontiaguda de gotas que deslizaram e depois se
solidificaram de uma vez em graciosas formas pontudas de pura perfeição.
Avistamos um
amontoado de latas de comida e corremos na direção delas. Caímos sobre a neve,
nos levantamos e corremos mais um pouco, até que Benny saiu nos empurrando pra
os lados e se precipitou sozinho para cima das latas, tentando chegar primeiro.
Agarrou algumas delas, tentou abrir com as mãos, com a boca, com tapas e
mordidas, mas não conseguiu abrir nenhuma delas. AM não nos dera uma única
ferramenta para abrir as latas.
Benny
agarrou uma lata de pêssego em calda e, com selvageria, pôs-se a bater com elas
contra uma rocha de gelo, batendo repetidas vezes. Pedaços de gelo voavam para
os lados e a pedra se desfazia, mas a lata só ficava amassada, sem se abrir, e
a gargalhada da mulher gorda surgia de novo e repercutia ecoante por toda a
extensão do tundra. Benny perdeu todas as amarras da sanidade e se entregou por
completo ao furor da raiva total, passando a atirar latas com ferocidade extravazante
de ódio enquanto os outros de nós nos revirávamos na neve tentando encontrar
algum meio de pôr fim à desamparada agonia da frustração. Mas não havia nenhum
meio.
Então a boca
de Benny começou a espumar e ele se atirou para cima do Gorrister.
Naquele
instante, em me senti terrivelmente calmo.
Cercado pela
loucura, cercado pela fome, cercado por tudo o que há de mal, com exceção da
morte, eu percebi que a morte era a nossa única escapatória. AM nos mantinha
vivos, mas havia um jeito de derrotá-lo. Não seria uma vitória total, mas pelo
menos a paz. Dava para se contentar com isso.
Eu tinha que
ser rápido.
Benny estava
comendo o rosto do Gorrister. Gorrister
se debatendo, espalhando neve, Benny por cima, esmagando-lhe a cintura com as
poderosas pernas de gorila envolvendo-lhe o corpo, as mãos fechadas firmes
segurando a cabeça de Gorrister como se fosse um quebra-nozes, a boca rasgando
a carne e puxando pele e tendões. Gorrister gritava com tanta violência que
algumas estalactites caíram, fincando-se nos montes de neve. Centenas delas
despencavam como lanças afiadas. Benny puxou a cabeça para trás de uma vez,
mantendo os dentes firmes ao esticar um elástico de carne viva, exibindo um
alucinado sorriso vermelho de canibal.
A pele negra
de Ellen perdia a cor. Nimdok não tinha expressão, só olhava. Gorrister estava
semi-consciente. Benny era um animal. Eu sabia que AM o deixaria brincar.
Gorrister não iria morrer, mas Benny ficaria de estômago cheio. Retirei-me a um
canto e esculpi uma lança de gelo com as pedras caídas e com a neve.
Depois foi
tudo num instante só:
Corri com a lança pontuda em punho, apoiando-a
na coxa direita. Com ela, penetrei Benny num ponto bem debaixo da caixa
torácica e puxei para cima, cortando-lhe o estômago e quebrando a lança dentro
dele. Benny se dobrou em dois e caiu imóvel no chão. Aproveitando que Gorrister
já estava deitado, prendi seu corpo – que ainda se movia –, peguei outra lança
e a enterrei fundo na garganta. Seus olhos se fecharam assim que a gélida
contundência o acertou. Ellen, embora paralisada pelo medo, deve ter se dado
conta do que eu tinha decidido fazer. Ela correu em direção ao Nimdok com uma
lança pequena na mão, e, conforme ele abriu a boca para gritar, ela lhe enfiou
a lança pela goela e tropeçou para cima do corpo dele, deixando a força da queda
precipitada fazer o resto do trabalho. A cabeça se remexeu freneticamente por
alguns segundos, como se pregada à neve pela nuca, e depois descansou inerte.
Tudo isso
foi num instante só.
Houve uma
pulsação sem som de mortificante antecipação. Eu era capaz de ouvir AM com a
respiração suspensa. Seus brinquedos foram retirados das suas mãos. Três já
estavam mortos, não poderiam ser trazidos de volta. AM, com sua força e
habilidade sobre-humanas, era capaz de nos manter indefinidamente vivos, mas
ele não era Deus. Ele não podia fazer alguém voltar à vida.
Ellen olhou
para mim, as feições de ébano destacando-se contra a neve que nos rodeava.
Havia tanto temor quanto súplica em seu semblante, na maneira como ela se
mantinha pronta. Eu sabia que dispúnhamos de apenas a fração de um segundo
antes que AM conseguisse nos interromper.
Fui rápido
em golpeá-la com a espada de gelo. Ela se dobrou, sangrando pela boca. Não
consegui extrair significado da expressão que ela tinha no rosto, pois a dor
havia sido demais, tendo lhe contorcido as feições; mas aquela expressão deve ter significado “muito obrigado”. É
possível.
Por favor,
que tenha sido isso.


Talvez já
tenham se passado mais algumas centenas de anos. Eu não sei. AM já vem se
divertindo há algum tempo, acelerando e retardando minha percepção das horas. Vou
dizer a palavra “agora”: agora. Demorou dez meses para eu dizer isso. Eu não
sei. Eu acho que demorou pelo menos
cem anos.
Ele ficou
furioso. Ele não me permitiu enterrá-los. Mas não importa. Não teria como abrir
sepulturas naquele chão. Ele fez a neve secar. Ele trouxe a noite. Ele rugiu e
enviou os gafanhotos. Não adiantou de nada; eles continuavam mortos. Eu havia
lhe passado a perna. Ele ficou furioso. Se antes eu pensava que AM me odiava, eu
estava enganado. Aquilo não era nem a sombra do ódio que agora vazava de cada
fita de circuito. Ele tomou todas as precauções para que eu sofresse para
sempre sem nenhuma chance de me matar.
Ele deixou
minha mente intacta. Eu posso sonhar, divagar, me lamentar. Eu consigo me
lembrar dos outros quatro. Eu queria...
Ora, isso
não faz sentido. Eu sei que eu os salvei, eu sei que os livrei do que aconteceu
comigo, mas, ainda assim, eu não consigo esquecer o fato de que eu os matei. O
rosto de Ellen... Não é fácil. Às vezes eu quero que... Ah, isso não importa.
AM alterou
meu corpo para ele poder ficar tranquilo, eu suponho. Ele não quer que eu saia
correndo em disparada e esmague meu crânio contra uma parede. Ou prenda a
respiração até cair desacordado. Ou corte meu pescoço com uma chapa de metal
enferrujada.
Existem
superfícies espelhadas por aqui. Vou descrever como eu enxergo a mim mesmo.
Sou uma imensa massa molenga e gelatinosa. Roliça, bulbosa,
sem boca, com buracos brancos palpitantes preenchidos de neblina onde meus
olhos costumavam ficar. Apêndices borrachudos onde antes eram os braços; excrescências
arredondadas, umas bolsas disformes de matéria flácida e escorregadia, mas nada
de pernas de verdade, para baixo do que poderia ter sido a cintura. Como uma
lesma, eu vou deixando uma trilha mucosa por onde passo. Manchas de um cinza maligno surgem e somem na
minha epiderme, como se clarões doentios pulsassem no meu interior.
Por fora: imbecilizado, me arrasto pelos cantos, uma coisa
que nunca poderia ser chamada de humana, uma bolha deformada tão distante dos
contornos antropomorfos que qualquer vaga semelhança com o corpo de uma pessoa
se torna, por isso mesmo, mais obscena.
Por dentro: solitário, sozinho. Vivendo debaixo da terra,
debaixo do mar, nas entranhas de AM, esse computador a quem nós criamos porque
nosso tempo estava sendo mal gasto, a quem decerto esperávamos,
inconscientemente, que fosse melhor do que a gente. Pelo menos os outros quatro
estão a salvo agora.
AM vai ficando cada vez mais furioso por causa disso. Isso me
deixa um pouco mais feliz. Mas, mesmo assim... AM ganhou, simples assim... ele
teve sua vingança...
Eu não tenho boca. E preciso gritar.
Harlan Ellison possui uma escrita cativante! Esse conto carregado de sarcasmo e voluptosamente caprichado carrega em si uma mistura de uma linguagem crua e ao mesmo tempo sofisticada. Ao lê-lo pude sentir toda a sensação de repulsa e magnetismo num êxtase totalmente inóspito grafadas em suas letras tão coerentemente bizarras e nefastas. Em meados da década de 80 eram comuns os seres humanos imaginarem criaturas dotadas de uma inteligência superior constituídas em super mentes como uma cpu mestre de computadores. Sua tradução ficou precisamente competente. Apesar de eu particularmente preferir a obra em sua linguagem original. Mas é questão de gosto mesmo! No meu entender quando uma obra é traduzida perde-se muito de sua essência, prejudicando o resultado final. O conto é maravilhoso de ser lido. Espero por mais contos como esse aqui em seu blog. É difícil encontrar obras tão bem escritas nos inúmeros blogs existentes por aí. Um abraço!!
ResponderExcluirÓtimo conto
ResponderExcluirA tradução ficou excelente, parabéns!
ResponderExcluirMuito bom conto e tradução. Mas só chamando a atenção para o fato de que não é a primeira do Brasil.
ResponderExcluirDe fato, temos uma tradução na antologia de contos chamado "maquinas que pensam"
Excluirhttps://www.skoob.com.br/maquinas-que-pensam-26755ed29086.html
Obrigado por compartilhar. Vou comprar a antologia do Isaac Asimov pois por este conto devem haver contos bons por lá.
ResponderExcluirOlá. Alguém aqui teria esse livro traduzido que gostaria de vender? Estou buscando por ele mas ainda não encontrei.
ResponderExcluirAguardo retorno. Grata. Lu
Eu até já achei mas tava 19.000 reais
ExcluirFiz um vídeo sobre o tema. Ótima tradução!
ResponderExcluirhttps://youtu.be/ciLg8RLKBa4
recentemente esse livro e a adaptação do jogo estouraram no Tik Tok (a história do jogo é bem diferente, não vale a pena), e eu fiquei muito curiosa, com vontade de ler, mas não tava achando em lugar nenhum. adorei o conto, obrigada pela tradução incrível 👏
ResponderExcluirTambém vim influenciada pelo tiktok. Ótimo conto e ótima tradução.
ExcluirEu discordo. O próprio autor ajudou a escrever a lore, sendo até mesmo interessante ler o que ele ajudou com a sua colaboração. Graças ao jogo, dá até pra entender por que o Nimdok saía durante a noite e fazia coisas que AM nunca deixou os outros quatro saberem. Fora que o próprio autor foi o responsável por dublar AM. E há muito mais detalhes sobre como AM se sentia inclusive na adaptação em áudio de I Have No Mouth, And I Must Scream feita pela BBC, em que o AM diz pro Ted sobre o que o levou a sentir tanto ódio pela humanidade, sendo dublado de novo pelo Harlan Ellison (Durante toda a vida dele, ele fez questão de dublar AM pra garantir que qualquer um que consumisse, pudesse sentir na voz o quanto AM odeia a humanidade). Conferir as outras mídias do livro vale a pena com total certeza.
ExcluirÓtima tradução, vi alguns pequenos erros aqui e ali, mas faz parte. Afinal, o livro mesmo tendo poucas páginas é r elativamente grande. Esse livro me surpreendeu principalmente por ser muito,mas MUITO detalhado em algumas partes. A forma como Ted narra a história é mt completa, os detalhes em excesso fazem com que você realmente imagine tal coisa com mais facilidade. A personalidade de cada personagem foi muito bem aproveitada e realmente fazendo com que, Benny, realmente parecesse um tipo de homem das cavernas, canibal, um físico de gorila e uma mentalidade de um neandertal. Bom, eu n tenho mais o que comentar sobre (na verdade eu tenho, só não vou escrever por preguiça). Bom, nota 9/10 para "i have no mouth and i must scream" história muito bem trabalhada mas poderia ser até maior na minha opinião.
ResponderExcluirNunca li porcaria pior que esta. O autor deveria ter acrescentado mais dois parágrafos, justamente para mencionar repetidamente desta maldita genitália do tamanho de um cavalo. Não passa de pornografia disfarçada de ficção.
ResponderExcluirvai santos 🤍🖤
ExcluirAdorei. Vim ler o conto por causa do jogo. Muito bom mesmo, obrigada pela tradução.
ResponderExcluirMaravilhoso !!
ResponderExcluirbem eu estou numa escolar nesse exato momento e eu estou lendo esse livro quase chorando no final em Quanto Todo mundo ta fazendo tested kkkkkjkkk
ResponderExcluirvoltei depois de 2 messes eu acho e eu to AQUI Esperanto os outros terminarem os trabalhos deles eu estou em uma Sala de educao fisica sentada num computador escrevendo.
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