Nesta semana, tive o enorme prazer de conversar com o grande escritor Rubens Francisco Lucchetti, uma verdadeira lenda viva das páginas brasileiras do terror, da fantasia e do mistério, além de um senhor simpático, apaixonado pelo que faz e sempre atencioso com os fãs.
Talvez você ainda não o conheça pelo nome (afinal, grande parte de sua obra foi escrita sob os mais variados pseudônimos, tais quais: Theodore Field, Terence Gray, R. Bava, Brian Stockle, Vincent Lugosi e até mesmo Mary Shelby), mas certamente você já sentiu alguma influência do universo fantástico da vasta produção literária desse intrigante senhor fã de Edgar Allan Poe e Sir Arthur Conan Doyle.
Da máquina de escrever e do teclado do computador de R. F. Lucchetti constantemente saem frases poderosas – e sinceras – como "o horror nasceu comigo, está no meu DNA", "antes mesmo de ter o conhecimento da palavra, eu já tinha predileção pelo Fantástico" e "quando escrevo, mergulho em meu universo. Então, sou um deus: crio e destruo; e o mundo real, o qual abomino, passa a não existir".
R. F. Lucchetti é um legítimo autor pulp: talvez o primeiro (e único) autor pulp do Brasil e, infelizmente, um dos últimos do mundo. Nas palavras do ficcionista, "o pulp tem algo só dele: nas histórias, as cenas se sobrepõem ao enredo".
Os livros pulp normalmente são feitos de papéis baratos e trazem contos de terror, mistério, ficção científica e histórias de detetives (literatura noir) |
Segue, agora, a agradável conversa que tive com esse notável ficcionista cujo corpo é brasileiro, mas cuja alma pertence ao infinito reino dos mistérios, da fantasia e da imaginação:
MELVIN MENOVIKS: Olá, Rubens. Creio que não preciso dizer que é um enorme prazer poder entrevistá-lo para o blog e que eu sou um grande admirador da sua obra, a qual vem me conquistando mais e mais a cada dia. Ter a oportunidade de poder conhecer mais a fundo suas experiências é como aprender os segredos de uma complexa arte com um verdadeiro mestre.
Então, vamos às perguntas: há quantos anos o senhor vem se dedicando à escrita ficcional? É verdade que já publicou mais de mil e quinhentos livros?
RUBENS FRANCISCO LUCCHETTI: Antes de
mais nada, quero agradecê-lo por estar me entrevistando.
Eu escrevo praticamente desde que aprendi a escrever,
por volta de 1939-1940. Tenho cadastrados 1.547 livros sob encomenda (todos
publicados com pseudônimos e heterônimos) e mais uns trinta publicados com o
meu nome.
M.M.: A ficção de horror é uma vertente
muito peculiar na literatura e no cinema. Há pessoas que a amam muito
intensamente e há aquelas que simplesmente não conseguem entender por que
alguém se interessaria por histórias de vampiros, fantasmas, bruxas, demônios e
assassinos em série. Trata-se de algo inexplicável e que reside nos recessos
mais profundos do coração. Pensando nisso, fico curioso: quando começou a sua
paixão pelo terror e pelo fantástico?
R.F.L.: Essas coisas nascem com a gente. É como aqueles
que preferem histórias Épicas ou de Aventura. Sempre que me fazem essa
pergunta, eu me recordo dos contos infantis. Elas não são repletas de bruxas,
duendes, castelos assombrados? Não sei como é hoje; mas, quando eu era criança,
minha mãe costumava dizer: “Não faça nenhuma
traquinagem, senão o homem do saco vem te buscar!” Para
mim, o horror e o fantástico fazem parte do cotidiano; basta você olhar o que
acontece em torno da gente. Não é fantástico um avião de peso enorme levantar
voo? Ou esse robô colhendo e mandando material e informações de Marte? Tudo
isso é simplesmente fantástico. É maravilhoso!
M.M.: Já fiz duas matérias aqui no blog a
respeito da importância da ficção de horror na vida das pessoas (a primeira pode ser lida aqui, e a segunda, aqui). Em linhas
gerais, para que o senhor acha que existe a fantasia macabra?
R.F.L.: Para mim, a fantasia macabra existe para nos
divertir. Que outro motivo poderia ter?
M.M.: O senhor me disse, certa vez, que
“os livros são como filhos”. Lembro-me de ter concordado pronta e plenamente
com essa afirmação e, apesar de eu mesmo não ser capaz de fazer muitas
comparações entre meus contos, assim como um pai não consegue julgar de qual
filho ele gosta mais, preciso lhe fazer essa pergunta maligna: para o senhor,
quais são os seus melhores livros? Existe algum de que o senhor não gosta? Por
quê?
R.F.L.: O livro de minha predileção é um que se encontra
inédito até hoje. Intitula-se Música Secreta. Dele só foi publicado, em
1952, um excerto. Foram impressos cem exemplares por minha conta. Os que eu menos
aprecio são todos que escrevi sob encomenda, pois tive de escrever apenas o que
os editores pediam.
M.M.: Quais são as principais influências
e inspirações para os seus trabalhos?
R.F.L.: As principais influências e inspirações do meu
trabalho são as histórias de Edgar Allan Poe e sir Arthur Conan Doyle.
M.M.: Quais são seus escritores favoritos
na literatura mundial? E entre os autores brasileiros, quais os que o senhor
mais admira? Há algum escritor brasileiro vivo que o senhor considera
excepcionalmente bom?
R.F.L.: Escritores
estrangeiros: Poe, Conan Doyle, Maurice Leblanc, Gaston Leroux, Rudyard
Kipling, Alphonse Daudet, Mark Twain, Guy de Maupassant, Pitigrilli, John
Dickson Carr, G. K. Chesterton, Agatha Christie, Sheridan Le Fanu, M. R. James,
Bram Stoker, Jorge Luis Borges, Émile Zola, Dostoievski, Robert Louis
Stevenson, J. R. R. Tolkien, Charles Dickens; gosto dos poetas de língua árabe
(Amaru, Saadi, Omar Khayyán...), do poeta indiano Rabindranath Tagore e do
poeta norte-americano Walt Whitman. Quanto aos autores brasileiros: Érico
Veríssimo, Monteiro Lobato, Dyonélio Machado, Josué Guimarães, Humberto de
Campos, Benjamin Costallat, João de Minas, João do Rio, Afonso Schmidt, Mario
Graciotti, Machado de Assis, Lúcio Cardoso e os poetas Judas Isgorogota,
Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia. Há dois autores que são obrigatórios
todo brasileiro ler: Gilberto Freyre e Euclides da Cunha. Quero acrescentar
outro autor obrigatório: o holandês Hendrik W. Van Loon, cujos livros foram
publicados no Brasil pela Livraria do Globo, de Porto Alegre.
Você me pergunta também se há algum escritor brasileiro vivo que eu considero excepcionalmente bom. Há, sim. Na verdade é uma escritora: Mariana Portella, autora do romance O Outro Lado da Sombra.
M.M.: E no cinema, quais os artistas de
que o senhor mais gosta?
R.F.L.: Na verdade, há uma legião de atores e atrizes de
que eu gosto. Vou citar algumas e alguns: Deanna Durbin, Theresa Russell, Gail
Russell, Grace Kelly, Doris Day, Romy Schneider, Maria Montez, Kim Novak,
Michèle Morgan, Barbara Steele, Nicole Kidman, Nastassja Kinski, Priscilla
Lane, Jacqueline Bissett, Ella Raines, Ruth Roman, Lauren Bacall, Veronica
Lake, Maria Schell, Marguerite Chapman, Audrey Totter, Claire Trevor, Gene
Tierney, Debra Paget, Rita Hayworth, Patricia Neal, Charles Chaplin, Humphrey Bogart, Peter
Lorre, Sidney Greenstreet, Laird Cregar, Cary Grant, Jean-Paul Belmondo, Paul
Newman, Vincent Price, Lon Chaney (pai e filho), Bela Lugosi, Boris Karloff,
Burt Lancaster, Totò, Vittorio Gassman, Marcello Mastroianni, Edward G.
Robinson, Alan Ladd, James Cagney, Claude Rains, Orson Welles, Charles
Laughton, Basil Rathbone, Nigel Bruce, Laurence Olivier, Orson Welles, David Jansen, Rock Hudson, Yves Montand, sem
esquecer de O Gordo e o Magro e os Irmãos Marx.
M.M.: O senhor gosta de música? O que
costuma ouvir?
R.F.L.: É lógico que gosto de música. Gosto da boa música,
da música que nos transmite algum tipo de emoção. Costumo ouvir música erudita
e música orquestrada.
M.M.: Para minha surpresa, vi no seu
facebook que o senhor não se considera propriamente um escritor, mas um
ficcionista. Qual é a diferença entre um e outro, e por que o senhor não se
considera um escritor?
R.F.L.: Eu me considero um ficcionista. Tudo o que
escrevo é ficção. Não escrevo sobre o mundo real. Escrevo sobre o meu mundo. E não habito o mundo real, o qual detesto. Habito um universo povoado por múmias, vampiros, lobisomens, monstros vindos de regiões abissais ou do além, mortos-vivos, fantasmas, damas fatais, detetives particulares, mulheres misteriosas. Em meu mundo, sempre é noite e as ruas são becos escuros e encobertos por um eterno nevoeiro. Em meu mundo, cada esquina esconde um mistério.
M.M.: Li, no excelente livro “Conversações com R. F. Lucchetti”, do Rafael Spaca, que o senhor é uma pessoa tímida e
relativamente reclusa. Identifiquei-me muito com isso, pois também tenho certa
tendência a me afastar das outras pessoas e uma considerável dificuldade em me
relacionar em alguns grupos. No entanto, parece-me que, para sobreviver no universo
da literatura em nosso país, é indispensável que a pessoa seja bem relacionada
e não tenha hesitações para se expor publicamente. Como o senhor conseguiu
construir uma carreira tão prolífica na sua área sendo tímido?
R.F.L.: Acho que minha carreira não tem nada a ver com a
minha timidez. Penso até que foi o fato de eu gostar de ser um recluso que me
levou a ser um ficcionista. Porque para ser um ficcionista, você não precisa de
mais ninguém, a não ser você mesmo. E só agora, às vésperas de completar 86
anos de idade, foi que comecei a relacionar-me com o meu público. Nem tinha
consciência do grande número de pessoas que me conhecem e que são minhas fãs.
"Conversações com R. F. Lucchetti": livro altamente indicado para quem ficou curioso sobre o "Papa da pulp fiction no Brasil" |
M.M.: Já houve algum momento de sua vida
em que o senhor teve dúvidas sobre a sua própria capacidade artística ou se
valia a pena se dedicar à literatura em um país em que tão pouca gente lê? Em
suma: já passou pelas tão temidas “crises criativas e existenciais”? Se sim,
como as superou?
R.F.L.: Pobre não
pode ter crise existencial. Isso é coisa para rico. Pobre não precisa de
sessões de psiquiatra. Como sempre fui pobre, nunca tive crise existencial.
Quanto a crises de criatividade, às vezes elas acontecem.
Agora, quero destacar que escrever é algo que tem de ser feito cotidianamente, faça sol ou chuva, calor ou frio. Escrever, para mim, é uma terapia: eu me livro dos meus traumas.
M.M.: Tenho certeza de que o senhor recebe
elogios constantes por seus escritos. Mas e o oposto: o senhor já se deparou
com pessoas que menosprezaram o seu trabalho? Se sim, como lidou isso?
R.F.L.: Como não? Já me deparei com vários “amigos” que menosprezaram meu trabalho.
Teve um que, quando chegou a prova da capa do meu primeiro livro, fui mostrar para
ele. O sujeito olhou para o impresso e disse, com cara de nojo: “É, está mais ou menos.” Então, pensei: “Aí, vagabundo, como você não conseguiu nada
em matéria de literatura, está menosprezando aqueles que conseguiram alguma
coisa.” A partir de então, passei a vê-lo com a mesma simpatia de quem olha
para um poste.
M.M.: Imagino que deve lhe entristecer
muito quando alguém não gosta tanto de alguma história sua. Mas, pelos seus
comentários no facebook, percebo que um simples comentário lisonjeiro e sincero
de um fã é capaz de alegrar seu dia com uma luz especial e maravilhosa. Creio
que somos muito parecidos nesse ponto também, pois poucas coisas tornam meu dia
tão feliz quanto descobrir que alguém está se divertindo com alguma de minhas
histórias. Mas me diga uma coisa: se tivesse de escolher (e essa é outra
daquelas perguntas malignas), o senhor preferiria ter poucos leitores, mas
leitores que realmente amam seus escritos, ou uma multidão de leitores que
apenas gosta deles?
R.F.L.: Eu escrevo para o meu divertimento. Depois, para
os outros. E, se esses outros se divertirem com o que eu escrevo, é lógico que
eu fico satisfeito. Mas, infelizmente, você não pode agradar todo mundo. Sempre
haverá os descontentes. Criei uma página no facebook
há exatamente um ano e estou impressionado com os amigos virtuais que estou
encontrando. Isso veio dar um novo sentido e um novo alento à minha vida. Aliás,
mudou a minha vida. Tenho alguns amigos e algumas amigas que parece que os (as)
conheço desde a mais tenra idade. Em contrapartida, não consigo lembrar o nome
de um só colega de escola ou de infância. E meu maior desejo é que aqueles que
apreciam o meu trabalho o façam com sinceridade.
M.M.: Com sua vasta experiência, o senhor
certamente já deve ter se deparado com todo o tipo de gente, desde
profissionais competentes e dedicados que acreditam e amam o que fazem até
tratantes que só querem tirar proveito das oportunidades e que só conseguem
tentar nos arrastar para baixo com eles. O senhor tem algum caso interessante
para contar sobre isso? De tudo o que o senhor aprendeu em sua trajetória, o
que poderia compartilhar com a gente?
R.F.L.: Conheci os mais diversos tipos de pessoas no
ramo editorial e no ramo cinematográfico. Por coincidência, estou há mais de um
mês organizando toda a minha correspondência. Encontrei cartas que já estavam
esquecidas. Se eu fosse levar muitas delas a sério, nunca teria me dedicado a
nada, nunca teria escrito nem uma linha sequer. Isso porque sempre me
dediquei a escrever histórias de gêneros totalmente estranhos à nossa cultura.
Sem contar aqueles que prometiam cantos de sereia. Vigaristas e picaretas você
encontra em todos os lugares. Somente há pouco mais de um ano encontrei uma
editora – a
Editorial Corvo – que me valorizou, inclusive dando o meu nome ao
título de uma coleção de livros.
M.M.: Que mensagem o senhor pode deixar para os novos
escritores de nosso país?R.F.L.: Perseverar sempre. Não esmorecer nunca. É como disse a atriz Sharon Stone: “O importante é você saber aonde quer ir.” Vá em frente e siga o seu coração!
M.M.: Rubens, muito obrigado pela disponibilidade e paciência. Foi um prazer enorme e uma experiência extremamente enriquecedora conversar com o senhor. Grandes abraços.
R.F.L.: Um grande abraço.
Para conhecer ainda mais sobre R. F. Lucchetti, recomendo, além da página dele no facebook, o site www.rflucchetti.com.br, a página sobre ele no Wikipedia e, ainda, o interessante livro "Conversações com R. F. Lucchetti", do Rafael Spaca (entre em contato com o autor para saber como adquiri-lo). Para comprar algum livro da excelente coleção R. F. Lucchetti, adicione-o no facebook (aqui está o link) e encomende o livro diretamente com ele. O Sr. Lucchetti responde pessoalmente a todas as mensagens. E, se você não souber por qual livro começar, eu recomendo, em especial, os títulos "Máscaras do Pavor", "O Museu dos Horrores" e o divertidíssimo "O Fantasma de Tio William" (publicado na famosa Coleção Vaga-Lume, da Editora Ática).
Maravilha!!!! Parabéns a ambos!!!!!!
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