domingo, 9 de abril de 2017

ROSTOS: conto de horror e loucura baseado em fatos reais


Encontrei o conto abaixo esquecido em meio a alguns manuscritos pessoais, e, por ele ser bastante curto, resolvi postá-lo aqui no blog para vocês. "Rostos" só não está presente no livro A Caixa de Natasha e outras históriasde horror porque eu o escrevi depois de ter concluído o livro, mas gosto bastante desse conto, em toda sua simplicidade e esquisitice. A história, escrita em primeira pessoa, aborda a paranoia e o desespero de um narrador atormentado por estranhas visões de rostos deformados e foi inspirada nas perturbadoras imagens do filme Alucinações do Passado (Jacob's Ladder, de 1990), bem como nas bizarras pinturas de Francis Bacon. Além disso, seu tema central provém de um incidente ocorrido há algumas décadas na cidade de Tabapuã-SP, onde nasci e vivi até a adolescência.


ROSTOS

Eles estão me perseguindo... Sei que estão me perseguindo... Aqueles seres estranhos e esquivos, de rostos riscados e deformados, tentando se passar por humanos...

Mas eles não me enganam... HaHaHaHa! Acham que podem me assustar! Não é engraçado? Eles acham que podem me assustar e me enganar! HaHaHaHa! Que ingênuos!

Quando estou saindo de casa, de manhã bem cedinho, finjo não notar, mas sempre olho para trás, por sobre o ombro direito (pois nunca é bom encarar as coisas pelo lado esquerdo, especialmente aquelas que não são humanas, não é verdade?), e vejo um deles lá, escondido atrás do poste, fingindo ler um jornal e virando as páginas ao acaso, como se nada estivesse acontecendo. Mas eu sei que isso é apenas um subterfúgio para ele tentar passar despercebido, encobrindo a aparência incomodamente obscura de seu rosto que logo o denunciaria como um de meus perseguidores. Que medíocres! Acham que eu não vou reconhecê-los só porque assumem formas humanas e fingem estar praticando ações rotineiras de pessoas comuns! Mas aqueles rostos não me enganam... Oh, não! De forma nenhuma, meu caro amigo. Às vezes eu tenho de prestar muita atenção para identificá-los, mas eu nunca deixaria de perceber aqueles rostos inexpressivos, espiões, que estão sempre cobertos por uma máscara desfocada e cambiante de riscos e arranhões parecidos com aqueles que eu vejo em meus pesadelos! Não, não. De forma nenhuma, meu caro amigo. Aliás, quanto mais eles tentam ficar parecidos com seres humanos de verdade, com pessoas comuns, mais ridículos eles ficam e com mais facilidade eu os percebo tentando se esconder pelo meu caminho, observando-me... Uns atrás de prateleiras nos supermercados, espiando-me sorrateiramente com aqueles olhos que não têm cores; outros dentro de carros com vidros escuros, achando que pelo insulfilm não conseguirei distinguir suas faces inumanas, distorcidas, demoníacas, zombeteiras e malignas.
Seres medíocres! Não sei de onde vêm e nem por que me perseguem à surdina, mas são medíocres! Todos, medíocres! Porcos imbecis! Nenhum deles me assusta, sabia? HaHaHaHa! Por que eu teria medo deles, afinal? Só porque eles sempre estão nos cantos mais sombrios, seguindo-me com olhos grotescos que aumentam e diminuem de tamanho e adquirem formatos bizarros que mais parecem efeito de algum programa de computador que os estende, expande e contorce? Oh, não. Isso não me dá medo algum. De forma nenhuma, meu caro amigo. Na verdade, eu até gosto deles e da presença de seus rostos de contornos heteróclitos que conseguem ser ao mesmo tempo ameaçadores e sem expressões definidas... No começo, devo reconhecer, eu ficava um tanto receoso... Talvez até um pouco amedrontado... Mas depois passei a gostar deles. HaHaHaHa. Passei, sim... Apenas tenho que tomar cuidado... Nunca é bom deixar as janelas abertas ou atravessar a rua quando um deles está por perto...

Mas quando digo que, hoje em dia, gosto muito deles, não minto, pois eles, apesar de quererem trazer a desgraça para mim, estão sempre presentes, acompanhando-me como uma família da qual eu não sei se realmente quero me livrar. E se disser que eles são meus únicos amigos, ainda assim não tenho a intenção de deixar de dizer a verdade. Não acredita em mim? Pois como eu poderia ter outros amigos se sempre que alguém me chama para sair eu sou obrigado a recusar o convite, pois sei que pode ser mais uma emboscada ardilosa daqueles seres esquisitos que estão tentando me matar? Afinal de contas, eu sei que eles entram nas mentes das pessoas, mesmo nas daquelas mais queridas, e, quando menos se espera, são essas pessoas amadas que vão nos levar para a armadilha fatal que vai decepar nossa cabeça, envenenar nossa comida ou fazer com que uma caminhonete desgovernada nos atropele na faixa de pedestres e transforme em patê aquoso e espatifado a massa cinzenta que temos dentro do frágil crânio que a protege.
Apesar do perigo constante, gosto que me acompanhem. Isso faz com que eu sempre renove a certeza que tenho de que sou um ser especial. Nunca vou me esquecer de que não sou igual aos outros, enquanto eles estiverem me observando para pôr um fim em meus dias sobre a Terra.

Ora, se eles deixassem de me observar, de me seguir e de me espionar, eu seria apenas mais um de vocês, não é verdade? Vivendo vidas comuns, em rotinas banais, com trabalhos enfadonhos, estudos medíocres e sonhos baratos. Mas minha vida é muito diferente! Sei que sou o escolhido – e, por isso, devo velar pela minha segurança.

A todo o momento, de dia, de noite ou de madrugada, um rosto grotesco parecido com uma bola de fermento que ficou por tempo demais no forno sai de dentro de uma janela e me ameaça tacitamente com aquela aparência funesta que consegue ser simultaneamente maléfica e impessoal. A toda hora, quando eu poderia estar despreparado, não fosse minha atenção permanente, uma inquietante face desfigurada, com boca e olhos deformados, como se fosse feita de cera e houvesse sido derretida por uma criança malvada, surge detrás de uma vitrine para mostrar que eles estão sempre me observando, seguindo meus passos, alertas aos meus movimentos e desconfiados de minhas ações. A face é tão absurda que eu quase chego a acreditar que ela não é real: a pele esticada e grudada por sobre onde deveria estar a boca; os nervos retorcidos; o nariz recortado; as pupilas ocupando toda a região interna dos orifícios oculares, sem espaço para as escleras, modificando-se em forma e expressão de minuto em minuto, como um alienígena que se comunica por códigos emitidos pelo olhar... Estranhos riscos negros rodopiam ao redor dessa malformada pelota de carne que parece escarnecer de mim como se fosse um demônio surgido de uma alucinação traumática... Dores de cabeça que surgem como zunidos altíssimos no fundo dos tímpanos às vezes me fazem quase desmaiar quando há muitos deles ao meu redor.

Por isso, vivo sozinho, sem amigos ou conhecidos: talvez eles todos façam parte dessa horrenda conspiração contra mim...

Namoradas? Também não as tenho. Já sofri demais por causa delas. Lembro-me muito bem de quando, acordando após uma noite de paixões ilusórias, viro-me para o lado para dar um beijo em minha amada e o que vejo é mais um daqueles aberrantes rostos deformados, retorcidos, cheios de faixas negras que os circundam como os espíritos perdidos devem circundar os túmulos em que jazem seus restos mortais. Ela aproximou-se para beijar-me suavemente a boca, como se eu não soubesse que ela era um deles. Mas o rosto dela estava ainda mais terrível do que os da maioria das criaturas espiãs, com uma torção sinistra na fisionomia. Além das medonhas aberrações de sempre, havia dentinhos acavalados escapando para fora da carne e bigatos caminhando pela face, alguns enroscados em reentrâncias abjetas e em fragmentos pontudos de ossos expostos. Os olhos estavam fechados, com as pálpebras grudadas umas nas outras por uma cera colenta de aspecto repugnante e da cor do látex quando podre. Era certo que ela era um deles. Por isso, tive de matá-la, é claro.

Foi com um martelo que eu guardava debaixo da cama para me proteger que eu salvei minha vida contra aquela artificiosa criatura com a qual eu inadvertidamente dividi meus lençóis, pondo em risco minha segurança. Desde então, nunca mais procurei me relacionar com mulheres. Não depois que tive de limpar meu quarto do cérebro, do sangue e dos pedacinhos de ossos esmigalhados que ficaram espalhados por sobre minha cama e espirrados pela parede e pelo chão. O lençol, empapado pela cabeça destruída, teve de ser enterrado com todos os fragmentos de podridão que nele ficaram esparramados. E o corpo eu queimei, para que o espírito daquela coisa traiçoeira, aniquilado pelas chamas e labaredas, não procurasse outra carne para possuir, mas encontrasse seu caminho rumo ao inferno ou ao local de onde quer que ele tenha surgido. Ao lado dos restos carbonizados, das cinzas e das fétidas partículas carnosas, finquei no solo o martelo salvador, como um símbolo do começo de minha vitória contra os inimigos espiões.

O rosto da minha professora da terceira série não deixava dúvidas de que ela era um deles: matei-a com uma faca. Meus pais também não me enganavam: cortei-lhes as gargantas. E as sombras irrequietas ao redor da cabeça do meu melhor amigo, Joel, a quem eu conhecia desde a infância, foram suficientes para fazer com que eu percebesse que ele também deveria ser eliminado, desta vez com uma pequena foice meio enferrujada e sem corte que achei ao lado da casa dele. Com certeza ele era mais um dos seres vigiadores; talvez o mais capcioso de todos, pois se passava por sincero amigo para conseguir sondar minha vida, invadi-la e, no momento certo, ceifá-la impiedosamente. Ele fingia ser meu melhor amigo desde quando éramos crianças apenas para conhecer meus hábitos e meus pontos fracos para, então, matar-me da forma mais cruel possível. Mas eu fui mais esperto e hoje estou sempre alerta. Nunca faço o mesmo caminho duas vezes. Não mantenho hábitos regulares. Mudo de casa de três em três dias, escondendo-me nos becos mais improváveis, onde eles nunca vão me achar. Esgueiro-me na penumbra quando eles se aproximam. Quando encontro uma casa temporária para viver, tranco as portas com cadeados pesados e grossas correntes sem elos fracos. Lacro janelas e fecho as cortinas. Assim posso dormir em paz. Mas somente assim. Quando não arranjo uma casa abandonada para fazer de residência provisória, ou quando não encontro um banheiro de rodoviária em que posso me trancar com segurança para tirar um cochilo, simplesmente não durmo. Passo dias e mais dias sem pregar o olho, revirando as pupilas para encontrar os astutos demônios que me perseguem. O frio, a fome e a insônia não me incomodam, contanto que eu esteja respirando e vivendo fora da mesa de tortura que reservam para mim no subsolo.
Hospitais, delegacias, escolas, postos de saúde, restaurantes, praças, bares, lojas e asilos: lá estão eles, esperando-me. Os ônibus e metrôs estão cheios deles. As ruas estão infestadas. Mas eu tenho sorte de conseguir vê-los. Assim estou sempre seguro, ao contrário de você, meu caro amigo. Pois eles estão atrás de você também.

Você já olhou pela janela hoje ou reparou bem no rosto daquele cara parado ali na esquina?

3 comentários:

  1. Muito bom o conto Gustavo. Que pena você tê-lo escrevido depois de concluir o livro, ele se encaixaria perfeitamente aos outros contos do livro. De qualquer maneira, gostei do que li e, obrigado por mostrá-lo em seu blog. Abraço!!

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    1. Vamos torcer para vir um livro novo logo, Luciano! Se isso acontecer, aí eu incluo o conto nele ;)

      Abraços!

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    2. E sobre o incidente?
      Fala um pouco aí

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