terça-feira, 27 de março de 2018

CONTO: O Grande Silêncio, de Ted Chiang


Prometo que a próxima publicação será sombria e cheia de sangue e mistérios, mas desta vez terei que pedir licença aos leitores mais hardcores para compartilhar com vocês um conto que foge um pouco da temática do blog. Trata-se do conto "O Grande Silêncio", do escritor de ficção científica Ted Chiang.

Ted Chiang é, de longe, um dos meus escritores favoritos de todos os tempos. Não vou ficar aqui fazendo elogios a ele ou explicando por que o considero tão genial, afinal basta ler qualquer um de seus escritos para perceber a imensa habilidade que ele possui em expor de maneiras deliciosamente simples assuntos que costumam ser tratados com complexidade e obscuridade, daqueles que em outras páginas parecem reservados apenas a investigações filosóficas espinhosas de gente super erudita.

Na maior parte de sua curta, porém preciosa obra, Ted Chiang trata de temas relevantes como linguística, desenvolvimento do intelecto, limites da ciência, problemas de comunicação e a essência da vida por um viés inusitado que, além de divertir o leitor como poucas histórias de ficção conseguem fazer, torna plenamente acessíveis a compreensão de reflexões mais profundas e a conquista de epifanias enriquecedoras, sendo sempre simples sem ser simplório. Ler qualquer texto já publicado por Ted Chiang é sair com a mente expandida e iluminada, com uma visão mais completa e otimista da realidade e da existência humana.

O breve conto que trago aqui para vocês é uma de suas histórias mais simples, apenas uma pequena amostra do talento plurivalente do escritor. Trata-se, contudo, de uma história tocante, capaz de emocionar qualquer pessoa.

O contexto é o seguinte: na cidade de Arecibo, em Porto Rico, foi instalado o maior telescópio fixo da Terra (o "Radiotelescópio de Arecibo"), destinado, entre outras funções, a tentar estabelecer contato com possíveis inteligências que vivam fora do nosso planeta. Nessa mesma região de Arecibo habitam as últimas espécimes de uma comunidade de papagaios que está correndo sério risco de extinção (Amazona vittata). Sabendo disso, os artistas visuais do grupo Allora & Calzadilla fizeram uma exibição em Arecibo para expor o fato às pessoas, em tentativa de gerar maior conscientização quanto ao contraste humano entre as altas pretensões da ciência em relação a alguns assuntos e a cegueira quase completa quanto a outros. Para acompanhar a exibição, os artistas convidaram o premiado escritor Ted Chiang para compor um texto a ser exibido em conjunto com os vídeos. E foi assim que surgiu o conto "O Grande Silêncio".

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O GRANDE SILÊNCIO, de Ted Chiang
Tradução de Melvin Menoviks

Os humanos usam o Arecibo para procurar inteligência extraterrestre. Seu desejo de estabelecer um contato é tão forte que eles criaram um ouvido capaz de escutar através do universo.

Mas eu e meus colegas papagaios estamos bem aqui. Por que eles não estão interessados em ouvir as nossas vozes?

Nós somos uma espécie não-humana capaz de nos comunicar com eles. Não somos exatamente o que os humanos estão procurando?

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O universo é tão vasto que vida inteligente com certeza deve ter surgido muitas vezes. O universo também é tão antigo que até mesmo uma espécie tecnológica deve ter tido tempo de se expandir e preencher a galáxia. Ainda assim, não há sinal de vida em lugar nenhum, exceto na Terra. Os humanos chamam isso de “o paradoxo de Fermi”.

Uma solução proposta para o paradoxo de Fermi é que espécies inteligentes tentam ativamente esconder suas presenças, evitando ser localizadas por invasores hostis.

Falando como um membro de uma espécie que foi levada próxima à extinção pelos humanos, eu posso atestar que essa é uma estratégia sensata.

Faz sentido permanecer quieto e evitar atrair atenção.

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O paradoxo de Fermi algumas vezes é chamado de “O Grande Silêncio”. O universo deveria ser uma cacofonia de vozes, mas em vez disso é de uma quietude desconcertante.

Alguns humanos teorizam que espécies inteligentes são extintas antes de elas conseguirem se disseminar pelo espaço sideral. Se eles estiverem corretos, então a quietude do céu noturno é o silêncio de um cemitério.

Centenas de anos atrás, minha raça era tão abundante que a floresta de Rio Abajo ressoava com as nossas vozes. Agora nós estamos quase dizimados. Em breve a floresta tropical pode estar tão silenciosa quanto o resto do universo.

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Havia um papagaio-cinzento africano chamado Alex. Ele era famoso por suas habilidades cognitivas. Famoso entre os humanos, eu quero dizer.

Uma pesquisadora humana chamada Irene Pepperberg passou trinta anos estudando o Alex. Ela descobriu que o Alex não apenas sabia as palavras para formas e cores, mas que ele também entendia os conceitos de formas e cores.

Muitos cientistas eram céticos quanto a um pássaro conseguir compreender conceitos abstratos. Humanos gostam de pensar que eles são únicos. Mas, ao fim, Pepperberg os convenceu de que Alex não estava apenas repetindo palavras, e sim que ele tinha compreensão sobre o que estava dizendo.

De todos os meus primos, Alex foi o único que chegou perto de ser levado a sério como um parceiro de comunicação pelos humanos.

Alex morreu de repente, quando ele era ainda relativamente jovem. Na noite antes de morrer, Alex disse a Pepperberg: “Fique bem. Eu te amo”.

Se os humanos estão buscando contato com uma inteligência não-humana, o que eles podem pedir que signifique mais do que isso?

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Todo papagaio tem um chamado único que usa para se identificar; biólogos se referem a isso como o “chamado de contato” do papagaio.

Em 1974, astrônomos usaram o Arecibo para transmitir uma mensagem pelo espaço sideral com a intenção de dar amostras da inteligência humana. Esse era o chamado de contato da humanidade.

Na selva, papagaios abordam uns aos outros pelo nome. Um pássaro imita o chamado de contato do outro para atrair sua atenção.

Se os humanos algum dia detectarem a mensagem do Arecibo sendo enviada de volta para a Terra, eles vão saber que alguém está tentando atrair sua atenção.

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Papagaios são aprendizes vocais: nós podemos aprender a fazer novos sons após os termos escutado. É uma habilidade que poucos animais possuem. Um cachorro pode entender dezenas de comandos, mas ele não vai fazer nada além de latir.

Humanos também são aprendizes vocais. Nós temos isso em comum. Então humanos e papagaios compartilham uma relação especial com o som. Nós não apenas gritamos. Nós pronunciamos. Nós enunciamos.

Talvez foi por isso que os humanos construíram o Arecibo do jeito que construíram. Um receptor não precisa ser um transmissor, mas o Arecibo é os dois. Ela é um ouvido para escutar e uma boca para falar.

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Humanos viveram em companhia de papagaios por milhares de anos, e só recentemente eles levaram em consideração a possibilidade de que nós podemos ser inteligentes.

Eu suponho que não posso culpá-los por isso. Nós, papagaios, costumávamos pensar que os humanos não eram muito brilhantes. É difícil assimilar comportamentos tão diferentes dos nossos próprios.

Mas papagaios são mais similares aos humanos do que qualquer espécie extraterrestre será, e os humanos podem nos observar de perto; eles podem olhar nos nossos olhos. Como eles esperam reconhecer uma inteligência alienígena se tudo o que eles conseguem fazer é entreouvir à distância de centenas de anos-luz?

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Não é nenhuma coincidência que a palavra “aspiração” significa tanto esperança quanto o ato de respirar.

Quando nós falamos, nós usamos a respiração nos nossos pulmões para dar uma forma física aos nossos pensamentos. Os sons que produzimos são simultaneamente nossas intenções e nossas forças vitais.

Eu falo, logo eu sou. Aprendizes vocais, como papagaios e humanos, provavelmente são os únicos que compreendem por inteiro essa verdade.

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Existe um prazer que acompanha a formulação de sons com a boca. Isso é tão primordial e visceral que, ao longo de sua história, os humanos consideraram a atividade um caminho para o divino.

Os místicos pitagóricos acreditavam que as vogais representavam a música das esferas, então entoavam cânticos para retirar poderes delas.

Cristãos pentecostais acreditam que quando algum devoto fervoroso vivencia o fenômeno de falar em uma língua por ele desconhecida, ele está falando a linguagem usada pelos anjos do Paraíso.

Hindus brâmanes acreditam que, ao recitar mantras, eles estão fortalecendo os blocos que constituem a realidade.

Somente uma espécie de aprendizes vocais poderia atribuir tamanha importância ao som em suas mitologias. Nós, papagaios, apreciamos isso.

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De acordo com a mitologia Hindu, o universo foi criado com um som: “Om”. Essa é a sílaba que contém dentro de si tudo o que já foi e tudo o que será.

Quando o telescópio Arecibo aponta para o espaço entre as estrelas, ele escuta um leve murmúrio.

Astrônomos chamam isso de “música de fundo das micro-ondas cósmicas”. É a radiação residual do Big Bang, a explosão que criou o universo catorze bilhões de anos atrás.

Mas você também pode pensar nele como uma reverberação vagamente audível do “Om” original. Essa sílaba foi tão ressoante que vai continuar vibrando no céu noturno por todo o tempo em que o universo existir.

Quando Arecibo não está ouvindo outra coisa, ele escuta a voz da criação.

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Nós, papagaios porto-riquenhos, temos nossos próprios mitos. Eles são bem mais simples do que a mitologia humana, mas eu acho que os humanos gostariam de conhecê-los.

Infelizmente, nossos mitos estão sendo perdidos conforme minha espécie vai morrendo. Eu duvido que os humanos terão decifrado nossa linguagem antes de termos sido extintos.

Então a extinção da minha espécie não significa apenas a perda de um grupo de pássaros. Ela também representa o desaparecimento da nossa linguagem, dos nossos rituais, das nossas tradições. É o silenciamento da nossa voz.

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A atividade humana levou meu grupo à beira da extinção, mas eu não os culpo por isso. Eles não fizeram isso de forma maliciosa. Eles só não estavam prestando atenção.

E os humanos criam mitos tão bonitos; que imaginação eles têm! Talvez seja por isso que suas aspirações sejam tão imensas. Olhe para o Arecibo. Qualquer espécie que consegue construir uma coisa dessas deve ter grandeza dentro de si.

Minha espécie possivelmente não estará aqui por muito mais tempo; é mais provável que nós morramos antes do nosso tempo e nos juntemos ao Grande Silêncio. Mas, antes de partir, nós estamos enviando uma mensagem à humanidade. Nós só esperamos que o telescópio de Arecibo os capacite a ouvi-la.

A mensagem é esta:

Fique bem. Eu te amo.

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