Thomas Pynchon,
o esteta da paranoia! Ah, mas que lunático! Se louco ou genial, nunca
saberemos. Amado por uns, odiado por (muitos) outros e amado-e-odiado por tantos mais (categoria na
qual eu me incluo), Pynchon é, para dizer o mínimo, incomum. Seu magnum opus, “O Arco-Íris da Gravidade”
(Gravity’s Rainbow) é um calhamaço de
mais de 700 páginas de ficção pós-moderna praticamente ilegível, com cerca de 400
personagens bizarras e mal-definidas vagueando em histórias absurdas que se
interpenetram e se refratam, normalmente sem uma linha de continuidade discernível.
Espere, em seus livros, personagens desaparecendo sem mais nem menos para nunca
mais voltar, tramas surgindo do nada, histórias sem desfechos, pontas soltas,
ausência completa das estruturas narrativas tradicionais e paranoia, muita
paranoia.
Para um
conhecimento mais abrangente desse insondável monólito da literatura
norte-americana, recomendo o artigo “O ano em que enfrentei Thomas Pynchon”, no
qual Filipe Siqueira comenta sua experiência lendo o autor.
Aqui, por brevidade, comentaremos apenas superficialmente sobre “O Arco-Íris da
Gravidade” e, mais especificamente, apresentaremos “A História de Byron, a
Lâmpada”, nele contida. Uma resenha mais aprofundada do romance pode ser
encontrada neste link aqui.
Considerado a
obra-prima de Thomas Pynchon (que não se deixa fotografar nem dá entrevistas), “O
Arco-Íris da Gravidade”, publicado pela primeira vez em 1973, é uma narrativa
labiríntica e picaresca ambientada predominantemente na Europa devastada do
final de Segunda Guerra Mundial e nos primeiros momentos do pós-guerra. A
linguagem complexa e a técnica narrativa esquizofrênica se constroem a partir
do clima da contracultura norte-americana dos anos 60 e 70, com drogas,
rebelião, escatologias, humor anárquico, antimilitarismo feroz e atmosfera de
paranoias políticas, industriais e ambientais marcando presença constante.
Tanto o conteúdo quanto o estilo do livro provêm de uma miscelânea escabrosa de
todo o entulho da cultura de massas da época em que foi escrito – quadrinhos,
filmes B, programas de televisão, livros pornográficos, esoterismo, etc. – e se
utilizam dos jargões científicos e tecnológicos com que os meios de comunicação
vêm nos familiarizando cada vez mais. O “enredo” é uma sucessão de peripécias implausíveis
e situações nonsense, e muitos dos
personagens são estereotipados e caricaturais; a voz do narrador, além de não
ser nem um pouco confiável, é indefinida, mutante, sempre a perder-se em
digressões dentro de digressões. Trata-se de uma narrativa experimental que faz o leitor se sentir aprisionado em um labirinto semiótico (provavelmente
sem saída) em que as paredes estão revestidas de pornografias grotescas e
nojentas a desnortear qualquer tentativa de compreensão.
Para se ter uma
ideia, esse controverso estilhaçamento literário, como que um prisão
caleidoscópica de delírios paranoicos no interior da qual se escutam os últimos
sons caóticos e aleatórios de uma humanidade perdida, foi eleito pelo júri por
unanimidade como vencedor do Prêmio Pulitzer de 1974 na categoria Ficção, mas
o prêmio foi vetado pela comissão geral,
que, ofendida pelo conteúdo, descreveu o livro como “túrgido”, “obsceno”,
“prolixo” e “ilegível”, de modo que não houve premiado naquele ano.
No interior de
“O Arco-Íris da Gravidade”, lá pela página 622, surge, como que à parte do
restante do livro, o intrigante conto de estilo cartunesco sobre uma lâmpada
imortal chamada Byron (Byron, the bulb).
Para não atrapalhar a experiência de quem nela for se aventurar, não farei
qualquer comentário sobre essa estranha parábola. Deixo a multiplicidade de
interpretações possíveis (ou a eventual constatação da ausência de interpretações possíveis) a cargo do leitor.
Eis, portanto,
A HISTÓRIA DE BYRON, A LÂMPADA – Thomas Pynchon
Byron era para ter
sido fabricado pela Tungsram, em Budapeste. Provavelmente seria apanhado pelo
supervendedor Sandor Rózsavölgyi, pai de Géza, que cobria todo o território da
Transilvânia e estava entrando tanto no espírito da região que a sede da firma
já estava ficando meio paranoica em relação a ele, com medo de que ele lançasse
alguma maldição terrível sobre toda a operação se não lhe dessem o que ele
queria. Na verdade, ele era um vendedor que queria que seu filho se tornasse
médico, e acabou realizando seu desejo. Mas talvez tenha sido a aura pesada de
bruxaria em torno de Budapeste que teve o efeito de fazer com que o nascimento
de Byron fosse remarcado na última hora para a Osram, em Berlim. Remarcado,
sim. Existe um Paraíso de Lâmpadas-Bebê, levado meio na brincadeira como se
fosse coisa de cinema, sacumé, as Grandes Empresas, né, ha, ha! Mas não caia na
conversa d’Eles, não, a coisa é acima de tudo uma burocracia, e o Paraíso de
Lâmpadas-Bebê apenas como uma espécie de bico. Tudo pago pela própria
Companhia, sim, os quilômetros quadrados de organdi, os tonéis de corante
Rosa-Bebê e Azul-Bebê da ig Farben,
toneladas de Chupetas para Lâmpadas Elétricas Siemens, que dão à lâmpada
lactante a forma de uma corrente de 110 volts sem gastar um pingo de força. De
uma maneira ou de outra, o negócio desse pessoal de lâmpadas é mesmo criar uma
aparência de força, de poder, poder contra a noite, sem a realidade.
Na verdade, o P.
L. B. é bem bagunçado. Dos caibros escurecidos do telhado pendem teias de
aranha. De vez em quando uma barata aparece no chão, e todos os Bebês tentam
rolar para ver (sendo Lâmpadas eles parecem
ser perfeitamente simétricos, Skippy, mas não esqueça o ponto de contato na
extremidade da rosca) fazendo gu-gu! guuuu-gu!, brilhando frouxamente para a
perplexa barata, imobilizada e esmagável no meio do assoalho nu, viajando,
revivendo o horror de alguma súbita explosão de corrente saída do nada e, no
alto, a suave, onisciente Lâmpada. Em sua inocência, os Bebês não sabem o que
fazer com a ab-reação dessa barata – sentem o medo que ela experimenta, mas não
sabem o que ele é. Querem apenas ser simpáticos com a barata. Ela é
interessante, e se movimenta bem. Todos estão agitados, menos Byron, que
considera os outros Bebês um bando de babacas. É uma luta constante fazer com
que eles voltem sua atenção para alguma coisa que valha a pena. Ouçam o que eu
digo, Bebês, eu sou Byron, a Lâmpada! Vou cantar uma musiquinha pra vocês,
assim –
Vamos brilhar, brilhar, Bebês, chegou o nosso dia!
Vocês até parecem que têm hidrofobia,
Gritando e espumando feito um bando de malucos,
Eu vou levar vocês prum reino de baratas,
Onde em vez de ficar rolando como babacas
Vocês vão contemplar lá do teto, majestosas,
Suas súditas cascudas e asquerosas,
Elas vão adorar vocês até o dia nascer,
Mas vão correr pra todo o lado quando a Lâmpada acender!
Assim, vamos brilhar, que o futuro é de vocês,
E eu estou aqui, moçada,
Pra puxar uma cruzada,
Venham brilhar comigo, in-can-des-cen-tes Bebês!
O problema de Byron é que ele é uma alma velha, muito velha, trancafiada na prisão de vidro de uma Lâmpada Bebê. Ele odeia esse lugar, onde vive deitado, esperando a hora de ser fabricado, os alto-falantes só tocam Charleston, de vez em quando um pronunciamento à nação, que porra de lugar é esse? Byron quer sair daqui e cair no mundo, claro que está ficando cheio de problemas de fundo emocional, Brotoeja de Lâmpada Bebê, uma espécie de corrosão da rosca, Cólica de Lâmpada Bebê, espasmos fortes e rebeldes nas profundezas do filamento de tungstênio, Hiperventilação de Lâmpada bebê, em que ele tem a sensação de que seu vácuo foi penetrado sem que haja algum fundamento orgânico para tal...
Quando por fim chega a mobilização nacional, claro que Byron fica no sétimo céu. Por falta do que fazer, ele elaborou planos totalmente megalomaníacos – ele vai organizar todas as Lâmpadas, arranjar uma base de poder em Berlim, já está sabendo da Tática do Estroboscópio, é só você aprender o jeitinho (uma coisa meio ioga) de acender e apagar num ritmo que se aproxime ao ritmo alfa do cérebro humano que você consegue provocar um ataque de epilepsia! É verdade. Byron teve uma visão, olhando para os caibros de sua enfermaria, de 20 milhões de Lâmpadas, espalhadas por toda a Europa, ao receberem um pulso sincronizador combinado por um de seus inúmeros agentes na Rede, todas começando a piscar estroboscopicamente ao mesmo tempo, seres humanos estrebuchando em 20 milhões de cômodos como peixes nas praias da Energia Perfeita – Atenção, humanos, isso foi apenas um alerta. Da próxima vez, algumas de nós vão explodir. Ha-ha. Isso mesmo, vamos atacar de camicaze! Já ouviram falar no Lume Quiirguiz? pois bem, não passa de uma bunda de caga-lume em comparação com o que nós vamos – ah, vocês não estão nem sabendo do – é, que pena. Porque umas poucas Lâmpadas, um milhão mais ou menos, uns meros 5% de nós, estão mais do que dispostas a explodir numa grande combustão única em vez de ficar pacientemente esperando a hora programada de queimar... Assim sonha Byron com sua Tropa de Choque de Guerrilheiros, vamos acertar nas fuças do Herbert Hoover, do Stanley Baldwin, todos eles, com uma baita explosão coordenada...
Vamos brilhar, brilhar, Bebês, chegou o nosso dia!
Vocês até parecem que têm hidrofobia,
Gritando e espumando feito um bando de malucos,
Eu vou levar vocês prum reino de baratas,
Onde em vez de ficar rolando como babacas
Vocês vão contemplar lá do teto, majestosas,
Suas súditas cascudas e asquerosas,
Elas vão adorar vocês até o dia nascer,
Mas vão correr pra todo o lado quando a Lâmpada acender!
Assim, vamos brilhar, que o futuro é de vocês,
E eu estou aqui, moçada,
Pra puxar uma cruzada,
Venham brilhar comigo, in-can-des-cen-tes Bebês!
O problema de Byron é que ele é uma alma velha, muito velha, trancafiada na prisão de vidro de uma Lâmpada Bebê. Ele odeia esse lugar, onde vive deitado, esperando a hora de ser fabricado, os alto-falantes só tocam Charleston, de vez em quando um pronunciamento à nação, que porra de lugar é esse? Byron quer sair daqui e cair no mundo, claro que está ficando cheio de problemas de fundo emocional, Brotoeja de Lâmpada Bebê, uma espécie de corrosão da rosca, Cólica de Lâmpada Bebê, espasmos fortes e rebeldes nas profundezas do filamento de tungstênio, Hiperventilação de Lâmpada bebê, em que ele tem a sensação de que seu vácuo foi penetrado sem que haja algum fundamento orgânico para tal...
Quando por fim chega a mobilização nacional, claro que Byron fica no sétimo céu. Por falta do que fazer, ele elaborou planos totalmente megalomaníacos – ele vai organizar todas as Lâmpadas, arranjar uma base de poder em Berlim, já está sabendo da Tática do Estroboscópio, é só você aprender o jeitinho (uma coisa meio ioga) de acender e apagar num ritmo que se aproxime ao ritmo alfa do cérebro humano que você consegue provocar um ataque de epilepsia! É verdade. Byron teve uma visão, olhando para os caibros de sua enfermaria, de 20 milhões de Lâmpadas, espalhadas por toda a Europa, ao receberem um pulso sincronizador combinado por um de seus inúmeros agentes na Rede, todas começando a piscar estroboscopicamente ao mesmo tempo, seres humanos estrebuchando em 20 milhões de cômodos como peixes nas praias da Energia Perfeita – Atenção, humanos, isso foi apenas um alerta. Da próxima vez, algumas de nós vão explodir. Ha-ha. Isso mesmo, vamos atacar de camicaze! Já ouviram falar no Lume Quiirguiz? pois bem, não passa de uma bunda de caga-lume em comparação com o que nós vamos – ah, vocês não estão nem sabendo do – é, que pena. Porque umas poucas Lâmpadas, um milhão mais ou menos, uns meros 5% de nós, estão mais do que dispostas a explodir numa grande combustão única em vez de ficar pacientemente esperando a hora programada de queimar... Assim sonha Byron com sua Tropa de Choque de Guerrilheiros, vamos acertar nas fuças do Herbert Hoover, do Stanley Baldwin, todos eles, com uma baita explosão coordenada...
Mal sabe Byron a
fria em que vai entrar! Já existe uma organização, humana, denominada “Febo”, o
cartel internacional de lâmpadas, com sede na Suíça. É praticamente controlada
pela Internacional ge, a Osram e
as Associated Electrical Industries of Britain, as quais por sua vez são
controladas, nas proporções respectivas de 100%, 29% e 46%, pela General
Electric Company americana. A Febo determina os preços e a vida útil de todas
as lâmpadas do mundo, do Brasil ao Japão à Holanda (se bem que a Philips da
Holanda é o cão danado do cartel, que sem mais nem menos dá a louca, pula a
cerca e semeia o caos por todo o grande Acordo). Dado esse estado de repressão
geral, tudo indica que uma Lâmpada Bebê recém-nascida não pode senão começar de
baixo.
Só que a Febo
ainda não sabe que Byron é imortal. Ele começa sua carreira num antro de ópio
só para mulheres em Charlottenburg, pertinho da estátua de Werhner Siemens,
brilhando numa luminária de parede, uma entre tantas outras lâmpadas que
testemunham as formas mais langorosas de decadência weimariana. Enturma-se com
todas as outras lâmpadas do pedaço, Lampedusa da luminária vizinha, sempre
planeando uma fuga, Larry no banheiro, com seu estoque inesgotável de piadas
escatológicas, a mãe dele, Lorna, na cozinha, com suas histórias de bolinhos de
haxixe, pênis artificiais repletos de elixir paregórico a ser ejaculado nos
vasos capilares do útero, preces a Astarte e Lilith, rainha da noite, incursões
na verdadeira Noite do Outro, fria e nua nos assoalhos de linóleo após dias sem
dormir, sonhos e lágrimas viram um estado natural...
Uma por uma, no
decorrer dos meses, as outras lâmpadas queimam e desaparecem. As primeiras
vezes em que isso acontece, Byron fica muito abalado. Ele ainda é um
recém-chegado, ainda não aceitou sua mortalidade. Porém enquanto brilha horas a
fio, começa a dar-se conta da transitoriedade das outras lâmpadas: aprende que
amá-las enquanto elas estão presentes torna-se mais fácil, e também mais
intenso – amar como se cada hora programada fosse a última. Em pouco tempo
Byron torna-se um Veterano Permanente. Os outros reconhecem sua imortalidade de
saída, mas o assunto só é comentado em termos gerais, quando vêm de outras
partes da Rede relatos folclóricos sobre os Imortais, uma lâmpada do escritório
de um cabalista em Lyon que supostamente entende de magia, uma outra do lado de
fora de um depósito na Noruega que enfrenta a alvura ártica com um estoicismo
que causa arrepios estroboscópicos em outras lâmpadas, menos setentrionais, só
de imaginar. Se existem de fato outros Imortais na Rede, eles permanecem em
silêncio. Mas é um silêncio que diz muito, talvez tudo.
Assim, após o
Amor, a segunda lição que Byron aprende é o Silêncio.
À medida que
Byron começa a se aproximar das 600 horas, os agentes de controle na Suíça
começam a dar mais atenção a ele. A Sala de Vigilância da Febo fica debaixo de
uma montanha pouco conhecida dos Alpes, uma sala fria cheinha de equipamento
elétrico alemão, vidro, latão, ebonite e prata, blocos de terminais pesados com
mil jacarés e parafusos de cobre, e uma equipe de técnicos limpíssimos de
jaleco branco monitorando todos os medidores, caminhando de um aparelho para o
outro com pés leves de neve, para garantir que está tudo correndo bem, que
nenhuma lâmpada vai aumentar a vida útil média. Pode-se imaginar o que seria do
mercado se tal coisa começasse a acontecer.
Byron ultrapassa
a linha vermelha da Vigilância, a das 600 horas, e imediatamente, num teste de
rotina, a equipe verifica a resistência do filamento, a temperatura de
funcionamento, o vácuo e o consumo de energia. Tudo normal. Agora Byron vai
começar a ser inspecionado a cada 50 horas. Uma campainha suave vai soar na
estação de monitoramento sempre que chegar a hora.
Quando Byron
completa 800 horas – outra precaução rotineira –, uma agente de Berlim é
enviada ao antro de ópio para transferi-lo. Ela usa luvas de pelica forradas de
amianto e saltos agulha de dezoito centímetros, não, não é para passar
despercebida no ambiente não, e sim para ela poder alcançar a luminária e
desatarraxar Byron. As outras lâmpadas assistem, mal conseguindo conter o
pavor. A notícia se espalha pela Rede. A uma velocidade próxima à da luz, todas
as lâmpadas, Azos contemplando ruas vazias negras de baquelite, Nitralampen e
Wotan Gs iluminando partidas noturnas de futebol, Just-Wolframs, Monowatts e
Sirius, todas as lâmpadas da Europa ficam sabendo do que aconteceu. Ficam mudas
de impotência, de desânimo diante de lutas que julgavam ser apenas mitos. Não podemos fazer nada, o pensamento
comum zumbindo através de pastos de carneiros adormecidos, ao longo de
Autobahns, chegando aos mais remotos cais de carregamento de carvão no Norte, nunca podemos fazer nada... É só alguém
manifestar o mais leve sinal de possibilidade de transcendência que a Comissão
de Anomalias Incandescentes vem logo levá-lo embora. Algumas lâmpadas
protestam, talvez, aqui e ali, mas são apenas informações, moduladas pela
variação no brilho, nada que se assemelhe a uma explosão na cara dos poderosos
como a que Byron outrora previa, no tempo da enfermaria de Bebês, em sua
inocência.
Ele é levado
para Neukölln, para um quarto no subsolo onde mora um vidreiro que tem medo da
noite e que vai manter Byron aceso, velando todas as poncheiras de cristal, os
grifos e navios de flores, cabritos captados no meio de um salto, teias de
aranha verdes, sombrias divindades de gelo. Este é um dos muitos “pontos de
controle”, onde as lâmpadas suspeitas podem ser monitoradas com facilidade.
Em menos de
quinze dias, soa um gongo pelos corredores de gelo e pedra da sede da Febo, e
os rostos desviam-se dos medidores por um instante. Não há muitos gongos por
aqui. Gongo é uma coisa especial. Byron ultrapassou as 1000 horas, e agora é
adotado o procedimento padrão: a Comissão sobre Anomalias Incandescentes
despacha um agente para Berlim com ordens para matar.
Porém neste
ponto acontece uma coisa gozada. É, muito gozada mesmo. O plano é estraçalhar
Byron e mandá-lo de volta para a fábrica, para refundir os cacos – aproveitar o
tungstênio, é claro – e reencarná-lo no próximo projeto do vidreiro (um balão
que vai partir em viagem do alto de um arranha-céu branco). Não seria das
piores soluções para Byron – ele sabe tão bem quanto a Febo o número de horas
que já emplacou. Aqui na fábrica ele já viu muito vidro ser refundido,
devolvido à condição líquida e informe de onde provém e reprovem todo vidro, e
não se incomodaria de passar pelo processo. Porém está preso na roda do carma.
O vidro derretido, com seu brilho alaranjado, é uma meta inatingível, uma
tortura. Não há escapatória para Byron, ele está condenado a um infinito
regresso de bocais e ladrões de lâmpadas. Entra em cena Hansel Geschwindig,
moleque de rua weimeriano – desatarraxa Byron do teto e o guarda num bolso
cuidadoso e Gesssschhhh-windig! sai
pela porta afora. A escuridão invade os sonhos do vidreiro. De todas as coisas
desagradáveis que seus sonhos arrancam do ar noturno, uma luz apagada é a pior
de todas. Em seus sonhos, a luz era sempre esperança: a esperança básica,
mortal. Enquanto os contatos se desfazem helicoidalmente, a esperança vira
escuridão, e o vidreiro acorda de repente no meio da noite gritando: “Quem? Quem?”.
A Febo não chega
exatamente a ficar arrancando os cabelos. Esse tipo de coisa já aconteceu
antes. Há um procedimento a seguir. Isso implica que alguns empregados terão
que fazer mais horas extras, de modo que há aquela sensação vaga de prazer nos
intestinos de antegozo do dinheiro inesperado, e também uma animação igualmente
vaga provocada pela quebra da rotina. O negócio é emoções fortes, foda-se a
Febo. As equipes de busca, com seus rostos impassíveis, vão para a rua. Elas
sabem mais ou menos que bairros devem ser esquadrinhados. Partem do pressuposto
de que nenhum dos consumidores está sabendo da imortalidade de Byron. Assim, os
dados referentes aos Furtos de Lâmpadas Não
Imortais devem também aplicar-se a Byron. E os dados por acaso se acumulam nos
bairros pobres, de judeus, de viciados, homossexuais, prostitutas, os bairros
mágicos da cidade. Aqui se encontram os candidatos mais lógicos ao roubo de
lâmpadas, em termos do que representa esse crime. Vejo só toda a propaganda.
Trata-se de um crime moral. A Febo
descobriu – uma das grandes descobertas ainda não descobertas do nosso tempo –
que os consumidores têm necessidade de sentir uma certa consciência do pecado.
Essa culpa, nas mãos invisíveis apropriadas, é uma arma poderosíssima. Na
América, Byron e seus psicólogos dispunham de cifras, testemunhos de peritos e
dinheiro (dinheiro no sentido puritano do termo – um sinal visível e extremo de
aprovação de suas intenções) suficientes para fazer a Descoberta da Culpa
deslizar do alto do ápice entre teoria científica e fato. As taxas de crescimento
nos anos subsequentes viriam a sustentar a posição teórica de Bland (mas quem
sustentou sua posição prática no caixão no caminho até a cova foram os sócios
seniores da Salitiari, Povre, Sordi, Daim, Bruteccido e Kurtz, mais Lyle
Júnior, que estava espirrando. Buddy na última hora resolveu ir ver Drácula. Foi o que se deu melhor). De
todos os legados de Bland, a Heresia do Furto de Lâmpadas foi talvez o mais
grandioso. Não quer dizer apenas que alguém está deixando de comprar uma
lâmpada. Quer dizer também que alguém não está colocando nenhuma energia
naquele bocal! É ao mesmo tempo um pecado contra a Febo e contra a Rede. Nem
uma nem a outra podem se dar ao luxo de deixar uma coisa dessas se espalhar.
Assim, lá vão os
policiais da Febo, procurando o Byron roubado. Porém o moleque já não está mais
na cidade, foi para Hamburgo, e lá trocou Byron, com uma prostituta da Reeperbahn, por um
pico de morfina – o cliente da jovem hoje é um contador que gosta que lhe
enfiem lâmpadas no cu, e ele trouxe
também um pouco de haxixe para fumar,
de modo que quando sai de lá o cara já se esqueceu de Byron enfiado em seu cu –
aliás, nem chega a lembrar-se, pois quando finalmente se senta (voltou para
casa em pé no bonde) é na privada, e plop! Lá se vai Byron para a água e chchchuáááá!
Esgoto abaixo até o estuário do Elba. Sua forma é arredondada o suficiente para
lhe permitir uma passagem tranquila por toda a tubulação. Ele passa dias
flutuando no mar do Norte, até chegar a Helgoland, aquele mil-folhas vermelho e
branco torto brotando do mar. Fica lá por uns tempos, num hotel entre a Hengst
e o Mönch, até ser trazido de volta ao continente por um padre velhíssimo que
ficou sabendo da imortalidade de Byron no decorrer de um sonho rotineiro a
respeito do sabor de um certo Hochheimer safra 1911... de repente eis o grande
Berlin Eispalast, uma caverna cheia de ecos, treliças de ferro quase
invisíveis, cheiro de mulheres nas sombras azuis – perfumes, couros, trajes de
esqui de peles, pó de gelo no ar, pernas e nádegas que lampejam por um
instante, desejo latejando como febre, sensação de impotência na extremidade de
um trenzinho, atravessando na disparada trais de sol inundados de gelo em pó, e
uma voz no espelho nublado do chão dizendo, “Encontrem quem fez este milagre. É
um santo. Revelem-no. Providenciem sua canonização...” O nome está numa lista
que o velho prepara, com os nomes de cerca de mil turistas que entraram e
saíram de Helgoland desde o dia em que Byron foi encontrado na praia. O padre
dá início a uma busca de trem, a pé e num Hispano-Suiza, verificando cada
turista que consta na relação. Porém não vai além de Nuremberg, onde sua
valise, contendo Byron envolto numa alva, é roubada por um transeitista, um
luterano chamado Mausmacher que gosta de usar trajes papistas. Este Mausmacher,
não contente em fazer sinais da cruz papais diante do espelho, acha que seria
um tremendo barato ir ao campo de Zeppelin durante um comício-monstro noturno
do partido nazista totalmente transvestido de padre, e sair abençoando pessoas
a esmo. Archotes verdes ardendo, suásticas vermelhas, metais ressoando, e o
padre Mausmacher, de olho nas bundas e peitos, cinturas e malas, cantarolando
uma musiquinha clerical, um tema de Bach, sorrindo enquanto caminha por entre
Sieg Heils e corais de “Die Fahne Hoch”. Sem que ele o perceba, Byron escorrega
de dentro das vestes roubadas e rola para o chão. Em seguida, centenas de
milhares de botas e sapatos passam por ele, e nem unzinho deles sequer chega a
roçar Byron, claro. No dia seguinte (o campo agora morto, vazio, colunado,
pálido, riscado de longas poças enlameadas, nuvens matinais alongando-se por
trás do símbolo dourado composto por suástica e coroa de flores), ele é catado
por um pobre trapeiro judeu e levado para mais 15 anos de preservação contra o
acaso e contra a Febo. Será atarraxado em uma mãe (Mutter) após a outra, sendo este o termo usado na Alemanha para
designar a rosca feminina dos bocais de lâmpada, por algum motivo que ninguém
imagina qual seja.
O cartel já está
recorrendo ao Plano B, o qual prevê um estatuto de limitações de sete anos,
após o qual Byron será considerado legalmente queimado. Enquanto isso, o
pessoal que estava antes procurando por Byron agora está no encalço de uma
lâmpada longeva que outrora ocupou um bocal num posto do exército na selva
amazônica, chamada Laura, a qual acaba de ser roubada, misteriosamente, por um
grupo de índios saqueadores.
No decorrer de
todos os anos em que ele vem sobrevivendo, esses salvamentos de Byron têm
acontecido como que por acaso. Sempre que pode, ele tenta alertar todas as
lâmpadas vizinhas sobre a natureza malévola da Febo, e sobre a necessidade de
que sejam todos solidários contra o cartel. Byron já compreendeu que a Lâmpada
tem de ir além de seu papel de mero transmissor de energia luminosa. A Febo
reduziu a Lâmpada a essa única identidade. “Porém há outras frequências, acima
e abaixo do espectro visível. A Lâmpada pode gerar calor. A Lâmpada pode
fornecer energia para fazer plantas crescerem, plantas ilegais, dentro de
armários, por exemplo. A Lâmpada pode penetrar o olho adormecido, e atuar sobre
os sonhos dos homens”. Algumas lâmpadas o ouviam com atenção – outras pensavam
em maneiras de delatar Byron para a Febo. Alguns dos antibyronistas mais velhos
conseguiram alterar seus parâmetros de maneiras sistemáticas que poderiam ser
percebidas nos medidores de ebonite sob a montanha suíça: houve até algumas
poucas autoimolações, na esperança de atrais os algozes.
Naturalmente,
falar na transcendência da Lâmpada era considerado subversivo. A Febo tomava
como base de tudo a eficiência das lâmpadas – a razão entre a energia
utilizável que saía e a que entrava. A Rede exigia que essa razão fosse mantida
no nível mais baixo possível. Dessa maneira, eles vendiam mais eletricidade.
Por outro lado, a eficiência baixa implicava uma duração maior das lâmpadas, o
que reduzia as vendas da Febo. De início, a Febo tentou aumentar a resistência
do filamento, reduzindo a vida útil das lâmpadas de modo sorrateiro e gradual –
até que a Rede percebeu uma queda na sua renda e começou a pôr a boca no mundo.
Por fim as duas partes entraram num acordo, nos termos do qual a vida útil da
lâmpada teria um valor ótimo que garantisse uma renda boa para ambas, e elas
rachariam os custos da campanha antifurto. E também um ataque mais sutil
dirigido aos criminosos que se recusam a usar lâmpadas e preferem velas. Havia
um velho acordo entre a Febo e o Cartel da Carne, segundo o qual este deveria
restringir a quantidade de sebo em circulação mantendo mais gordura na carne a
ser vendida, independentemente dos problemas cardíacos que isso pudesse gerar,
e redirecionar a maior parte do sebo retirado da carne para a produção de
sabão. Naquela época, o sabão era uma indústria em ascensão. O Instituto Bland
havia descoberto que os consumidores tinham sentimentos profundos a respeito da
merda. De qualquer modo, a carne e o sabão eram de importância secundária para
a Febo. O que contava era um produto como o tungstênio. Mais um motivo pelo
qual a Febo não podia reduzir demais a vida útil das lâmpadas. Um excesso de
filamentos de tungstênio diminuiria os estoques disponíveis do material – sendo
a China o principal fornecedor no mundo, isso também trazia à tona questões
muito delicadas de política externa no Oriente – e perturbaria o acordo entre a
General Electric e a Krupp a respeito da quantidade de carbureto de tungstênio
produzida, onde, quando e quais os preços praticados. Combinaram uma faixa de
82 a 200 dólares o quilo na Alemanha, 444 a 888 dólares o quilo nos Estados
Unidos. Isso determinava de modo direto a produção de máquinas operatrizes, e
consequentemente todas as áreas de indústria leve e pesada. Quando estourou a
Guerra, algumas pessoas acharam que era falta de patriotismo da ge dar à Alemanha uma vantagem dessas.
Mas eram pessoas sem nenhum poder. Não se preocupem.
Byron continua brilhando e vendo essa situação se repetir mais e mais.
Aprende a estabelecer contato com outros tipos de aparelhos elétricos, nas
residências, nas fábricas, nas ruas. Cada um tem algo a lhe dizer. Toda uma
configuração vai se formando em sua alma (Seele,
nome dado na Alemanha ao filamento mais antigo, de carbono), e quanto mais
nítida e grandiosa sua visão, mais desesperado Byron se torna. Algum dia ele
saberá tudo, e continuará sendo tão impotente quanto antes. Seus sonhos juvenis
de organizar todas as lâmpadas do mundo agora lhe parecem impossíveis – a Rede
é totalmente aberta, todas as mensagens podem ser ouvidas por terceiros, e o
que não falta na linha são traidores. Tradicionalmente, os profetas não duram
muito – ou bem são mortos, pura e simplesmente, ou bem causam-lhes um acidente
sério o bastante para fazê-los parar e pensar, e na maioria das vezes eles
recuam. Porém o destino de Byron é ainda melhor. Ele está condenado a viver
para sempre, conhecendo a verdade e sem dispor do poder de mudar o que quer que
seja. Ele não vai mais tentar saltar fora da grande roda. Sua raiva e sua
frustração crescerão indefinidamente, e Byron perceberá, pobre lâmpada
pervertida, que isso lhe dá prazer...
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