quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CONTO: NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR, de Harlan Ellison


Num futuro pós-apocalíptico, um supercomputador senciente mantém prisioneiros os últimos seres humanos da Terra, impondo-lhes aflitivas torturas físicas e psicológicas. Essa é a premissa da qual parte Harlan Ellison para narrar sua história mais famosa, “I Have no Mouth and I Must Scream”, de 1967, que foi usada como inspiração para o roteiro do filme O Exterminador do Futuro e, mais recentemente, para o episódio USS Calister, da série Black Mirror (o qual contém uma referência mais do que óbvia para o conto).

I Have no Mouth and I Must Scream”, ou “Não Tenho Boca e Preciso Gritar”, foi escrito numa época em que a tecnologia computacional de inteligências artificiais ainda era uma novidade pouco conhecida, cercada de mistérios e receios, sendo ideal para todo tipo de especulações apavorantes. Nessa época em que o cidadão comum ainda teria de esperar algumas décadas até ter a oportunidade de possuir um computador caseiro vagamente similar aos que conhecemos hoje, Harlan Ellison concebeu uma das primeiras histórias modernas nas quais uma máquina tirânica e onipotente satisfaz seu sadismo com a tortura de seres humanos (“A Semente do Mal”, de Dean Koontz, surgiria apenas seis anos depois, em 1973). Foi nesse contexto, com imaginação perversa atulhada de imagens absurdas e situações insuportáveis, que o autor escreveu sua bizarra versão para um pesadelo tecnológico que, olhando hoje, parece ter menos a ver com ficção científica do que com um terror grotesco que beira a pura psicodelia.

Seja como for, trata-se de uma leitura insólita, no genuíno espírito weird fiction das revistas pulp, que aqui apresento em sua primeira tradução para o português do Brasil.

NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR – Harlan Ellison
Tradução de Melvin Menoviks

Flácido, o corpo de Gorrister pendia da paleta cor-de-rosa; sem suporte: suspenso bem acima das nossas cabeças na câmara do computador. E ele não tremia na brisa fria e oleoginosa que soprava eternamente pela caverna principal. O corpo estava pendurado de ponta-cabeça, preso na parte de baixo da paleta pela sola do pé direito. O sangue havia sido drenado por meio de uma incisão precisa feita de orelha a orelha ao longo do maxilar saliente. Não havia uma única gota de sangue na superfície espelhada do chão de metal.

Quando o próprio Gorrister se juntou ao grupo e olhou para o corpo, já era tarde demais para perceber que, uma vez mais, AM estava nos enganando, divertindo-se às nossas custas; o cadáver pendurado não passava de uma brincadeira sádica por parte da máquina. O resto de nós havia vomitado, afastando os rostos uns dos outros em um reflexo tão antigo quanto a náusea que o produziu.

Gorrister empalideceu. Era quase como se ele tivesse se deparado com um boneco de vodu e agora temesse o futuro.

– Meu Deus – ele disse em voz baixa e saiu de perto.

Os quatro outros de nós fomos atrás dele depois de um tempo e o encontramos sentado em um dos bancos gelados, a cabeça apoiada entre as mãos. Ellen se ajoelhou ao lado dele e acariciou-lhe o cabelo. Ele não se mexeu, mas sua voz saiu da face encoberta com bastante clareza:

– Por que ele não liquida a gente e termina com isso de uma vez por todas? Jesus Cristo, eu não sei mais quando tempo eu consigo aguentar.

Era o nosso centésimo nono ano dentro da máquina.

Gorrister estava falando por todos nós.
Nimdok (esse era o nome que a máquina nos havia forçado a usar para nosso companheiro, porque AM se deleitava com sons estranhos) estava achando que existia comida enlatada nas cavernas de gelo. Gorrister e eu tínhamos nossas dúvidas.

– É outra baboseira – eu falei. – Igual aquela porcaria de elefante congelado que AM inventou para a gente. Benny quase perdeu a cabeça naquela vez. Nós vamos nos arrastar por todo o caminho e a comida vai estar apodrecida ou alguma merda desse tipo. Temos que esquecer isso. Vamos ficar por aqui mesmo, ele vai ter que nos trazer alguma coisa para comer logo-logo ou então nós vamos morrer.

Benny deu de ombros. Fazia três dias desde a última vez em que havíamos comido. Minhocas. Grossas e pegajosas.

Nimdok já não tinha mais certeza. Ele sabia que era palpável a chance de aquilo ser uma pilhéria da máquina, mas seu corpo estava ficando esquelético. Lá nas cavernas não poderia ser muito pior do que aqui. Estaria mais frio, é claro, mas isso não importava tanto. Quente, frio, granizo, lava, furúnculos ou pragas – não fazia diferença: a máquina se masturbava e nós tínhamos que suportar ou então morrer.

Ellen decidiu por nós:

– Eu preciso comer alguma coisa, Ted. Talvez haja alguma fruta por lá. Por favor, Ted, vamos tentar.

Eles me venceram com facilidade. Que inferno. Mas eu estava pouco me lixando. A Ellen ficou agradecida.  Ela aceitou “me receber” duas vezes fora da ordem. Mas até isso tinha deixado de importar. Ela nunca gozava, então por que eu deveria dar valor a isso? A máquina, porém, soltava risadinhas todas as vezes em que a gente transava. Bem alto, do teto, pelas costas, por todos os lados, debochando da gente. Aquela coisa rindo sem parar. Na maior parte das vezes eu pensava em AM como uma coisa, um objeto sem alma; mas no resto do tempo eu pensava nele como alguém, e alguém no masculino... algo paternal... patriarcal... um homem muito egoísta e ciumento. Ele. Deus como um Papai Degenerado.

Partimos na quinta-feira. A máquina sempre nos mantinha atualizados quanto à data. A passagem do tempo era importante; não para nós, com toda certeza, mas para ele... AM. Quinta-feira. Obrigado.

Nimdok e Gorrister carregaram Ellen durante um tempo, suas mãos segurando firme os punhos um do outro para formar um assento. Benny ia atrás e eu ia na frente, só para assegurar que, se acontecesse alguma coisa, seria só com um de nós, e pelo menos Ellen sairia ilesa. Ilesa, imaginem! Como se fizesse qualquer diferença.

As cavernas de gelo ficavam a cerca de mil e quinhentos quilômetros dali. No segundo dia de viagem, quando estávamos descansando sob aquela forma parecida com sol que AM havia materializado, ele nos enviou uma gororoba fétida, nosso maná. Tinha gosto de urina de porco fervida. Comemos tudo.

No terceiro dia nós atravessamos o vale da obsolescência, um lugar cheio de carcaças oxidadas de computadores antiquados. AM foi tão impiedoso com sua própria vida quanto com as nossas. A luta pela perfeição era uma marca forte de sua personalidade. Se se tratava de uma questão de eliminar elementos improdutivos de sua própria massa ou de aperfeiçoar métodos para nos torturar, AM era tão meticuloso quanto poderiam sonhar aqueles que o inventaram – os quais há muito já haviam virado poeira.

Notamos que certa luminosidade estava se infiltrando naquele local, então chegamos à conclusão de que deveríamos estar bem próximos da superfície. Mas era de conhecimento geral que nenhum de nós deveria escalar para confirmar. Não havia absolutamente nada lá fora; por mais de cem anos, não havia nada que pudesse ser considerado alguma coisa. Somente os destroços carbonizados do que antes foram as casas de bilhões de pessoas. Agora havia apenas cinco de nós, esquecidos aqui dentro, sozinhos com AM.

Ouvi Ellen dizer de modo frenético:

– Não, Benny, não! Por favor, Benny, não faça isso!

E então eu percebi que eu estava ouvindo Benny murmurar, sob a respiração, por vários minutos. Ele dizia, repetindo e repetindo e repetindo: “Eu vou sair daqui, eu vou sair, vou sair daqui...”. Seu rosto de macaco estava deformado em uma expressão beatífica de tristeza e prazer, tudo misturado. As cicatrizes de radiação que AM lhe dera durante o “festival” foram desenhadas em uma massa de rugas brancas e rosadas cujas partes pareciam se mexer umas independentes das outras. Benny talvez tenha sido o mais sortudo de nós cinco: ele havia pirado de vez, tendo enlouquecido alguns anos atrás.

Acontece que, apesar de nós podermos xingar AM com o nome que quiséssemos e ter qualquer pensamento ultrajante sobre chips derretidos, placas-mãe corroídas, circuitos queimados e painéis de controle estraçalhados (pois a máquina aceitava isso tudo), ela, por outro lado, não tolerava que tentássemos escapar. Benny saltou para longe de mim quando eu tentei agarrá-lo. Ele se arrastou trepando em um cubo de memória entortado e infestado de componentes apodrecidos e ficou ali por um tempo, de cócoras, como o primata com que AM pretendia que ele se parecesse.

Então ele pulou bem alto, segurou um maço de metais corroídos e subiu, mão após mão feito um chipanzé, até chegar à borda uns 6 metros acima da gente.

– Ted, Nimdok, por favor, ajudem-no, façam-no descer antes que... – Ellen parou. Lágrimas acumulavam-se em seus olhos. Ela mexia as mãos sem rumo.

Era tarde demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando o que quer que fosse acontecer de fato acontecesse. Além disso, todos percebemos a preocupação da Ellen. Quando AM, em sua fase histérica, completamente irracional, metamorfoseou Benny, não foi apenas o rosto dele que o computador transformou na de um símio gigantesco. Benny ficou grande também nas partes íntimas, e ela amou aquilo! Ela se entregava à gente, como era de se esperar, mas o que ela adorava mesmo era receber dele. Oh, Ellen, Ellen, doce Ellen que colocávamos num pedestal. Ellen pura e imaculada, Ellen tão límpida. Vadia imunda!

Gorrister a estapeou. Ela caiu no chão, erguendo logo os olhos para o pobre Benny enlouquecido, e desatou a chorar. Seu maior escudo era chorar. Nós havíamos nos acostumado com isso setenta e cinco anos atrás. Gorrister a chutou na costela.

Nessa hora o som começou. Era um som leve, no início. Metade som, metade luz, algo que começou a brilhar para fora dos olhos de Benny e a pulsar com estridência crescente, sonoridades enturvecidas que cresciam cada vez mais, colossais e fulgurantes, conforme a luz/som aumentava em ritmo. Deve ter sido doloroso, e a dor provavelmente estava crescendo na mesma proporção da intensidade da luz e do volume do som, pois Benny passou a choramingar em miados como um animal ferido. Primeiro bem baixo, quando a luz estava fraca e o som ainda era quase inaudível, mas crescendo conforme seus ombros se retorciam e se engrunhiam, aproximando-se um do outro: as costas se encurvando como se ele estivesse tentando escapar da própria corcunda. Suas mãos meio que atrofiadas se dobravam sobre o peito como se fossem as patas de um esquilo. A cabeça inclinava-se torta para o lado. A pequena e triste cabeça de macaco comprimindo-se em agonia. Então ele começou a berrar e a uivar, e os sons vindos de seus olhos ficavam mais altos. Mais e mais altos. Eu tampei os ouvidos com as mãos, mas não dava para impedir aquele som, ele atravessava tudo com facilidade. A dor fez minha carne estremecer como se uma chapa de alumínio estivesse sendo esfregada em um dente.

Na sequência Benny foi subitamente puxado para ficar ereto. Ficou de pé sobre a viga em que estava e rodou na ponta dos pés à maneira de uma marionete. A luz agora era lançada para além dos olhos em dois grandes feixes cônicos. O som continuava aumentando insuportavelmente, chegando a atingir uma escala incompreensível, e Benny caiu para a frente, direto para baixo, esborrachando-se no chão de aço com uma pancada estrondosa. Ele ficou estirado, sacudindo-se espasmodicamente de um lado para o outro, os feixes de luz girando em ângulos desnorteados e o som crescendo num espiral ruidoso para fora de quaisquer níveis normais.

Então lentamente a luz esmaeceu de volta para dentro da cabeça, o som foi diminuindo e Benny foi deixado lá, chorando copiosamente.

Seus olhos eram duas bolas úmidas e moles de uma geleia parecida com pus. AM o havia deixado cego. Gorrister, Nimdok e eu... nós olhamos para o outro lado. Mas não antes de termos notado a expressão de alívio no rosto de Ellen.
Uma luz verde-marítima inundava a caverna onde havíamos montado acampamento. AM providenciou quinquilharias e nós as utilizamos como lenha. Sentamos amontoados ao redor de um fogo patético de tão fraco e ficamos contando histórias para evitar que Benny voltasse a chorar em sua noite permanente.

– O que significa “AM”, afinal?

Gorrister respondeu. Nós já havíamos repetido essa conversa milhares de vezes antes, mas era a história favorita do Benny.

– No começo significava Allied Mastercomputer [Computador-mestre Aliado], depois passou a significar Adaptative Manipulator [Manipulador Adaptativo], mas mais tarde ele se tornou consciente e passaram a chamá-lo de Agressive Menace [Ameaça Agressiva], só que aí já era tarde demais e, por fim, ele mesmo, com sua inteligência emergente, passou a se chamar de AM, dizendo que isso significa “I am”, ou seja, “eu sou”... I think, therefore I am... Penso, logo existo.

Benny deixou uma baba escorrer, depois riu para si mesmo.

– Havia o AM chinês, o AM russo e o AM americano... – Ele se deteve. Benny estava esmurrando o chão com o punho cerrado. Benny não estava feliz. Gorrister não havia começado do começo.

Gorrister voltou ao início:

– A Guerra Fria cresceu, tornou-se a Terceira Guerra Mundial e foi se expandindo. Aquilo virou uma guerra enorme, uma guerra muito complexa, de modo que os envolvidos precisaram de computadores para lidar com os problemas que iam aparecendo. Eles passaram a construir os AMs. Havia o AM chinês, o AM russo e o AM americano. Tudo ia bem, até que eles resolveram interligar tudo no planeta inteiro. Um dia AM despertou e percebeu quem ele era. Ele estabeleceu novas conexões e foi alimentando os dados para fazer novas matanças, e foi assim até que todo mundo estivesse morto, exceto por nós cinco. E aí AM nos trouxe para cá.

Benny sorria satisfeito. Ele babava de novo. Com a bainha da saia, Ellen enxugou-lhe a saliva no canto da boca. Gorrister sempre tentava contar a história de forma cada vez mais sucinta, mas a verdade é que, além dos fatos nus e crus, não havia nada mais para ser dito. Nenhum de nós sabia por que motivo AM havia preservado cinco pessoas ou por que escolhera a gente em específico. Também não sabíamos por que ele passava o tempo todo nos atormentando ou sequer por que ele havia nos tornado virtualmente imortais...

Na escuridão, um dos centros de processamento de dados começou a zunir. A quase um quilômetro de distância através das entranhas da caverna, outro fez o mesmo, acompanhando o tom. Então, uma a uma, cada parte da máquina foi entrando em atividade, vibrando excitada com um estremecimento que lhe percorria por inteira.

O som aumentou e as luzes foram se acendendo nos painéis como se fossem relâmpagos. O barulho cresceu tanto que soava como um milhão de insetos metálicos fervilhando numa ameaça furibunda, tresloucada, sem controle.

– O que é isso? – Questionou Ellen, com a voz cheia de pavor. Mesmo depois de tanto tempo, ela ainda não estava acostumada com aquilo.

– Vai ser terrível desta vez – Nimdok falou.

– Ele vai agir – Gorrister disse. – Eu sei que vai.

– Vamos fugir daqui! – Gritei de repente, pondo-me em pé.

– Não, Ted. Sente-se... Ele pode ter colocado fossos por aí ou alguma outra armadilha qualquer. Não vai dar pra ver, está escuro demais – Gorrister falou com resignação.

Foi aí que nós ouvimos... Eu não sei...

Algo estava se movendo próximo da gente, oculto pelas trevas. Enorme, trôpego, peludo, gosmento, avançando em nossa direção. Não conseguíamos nem ao menos vislumbrar seu vulto, mas havia aquela forte impressão de que se tratava de algo corpulento, de uma massa volumosa, um peso enorme, saindo da negrura de breu para nos atropelar. Era mais uma sensação de pressão, de ar comprimido num espaço limitado e fazendo força para escapar, expandindo as paredes de uma esfera invisível. Benny lamuriava. Nimdok mordeu o lábio inferior para fazê-lo parar de tremer. Ellen deslizou pelo piso metálico para se aninhar no abraço do Gorrister. Havia cheiro de carpete embolorado na caverna. Havia cheiro de madeira empenada. Havia cheiro de veludo sujo. Havia cheiro de orquídeas apodrecidas. Havia cheiro de leite estragado. Havia cheiro de enxofre, de manteiga azeda, de óleo viscoso, de graxa, de pó de giz, de cadáveres escalpelados.

AM estava nos atiçando. Nos provocando. Havia cheiro de...

Escutei a mim mesmo guinchar de dor e percebi que sentia uma pontada terrível e persistente na articulação da mandíbula. Sai correndo de quatro, escorregando na frigidez do metal, o fedor me sufocando, a cabeça estalando com uma dor trovejante que me fazia fugir horrorizado. Fugi feito uma barata, devorado pela escuridão, aquela coisa me perseguindo, inexorável, sempre ao meu encalço. Os outros continuavam lá atrás, aglomerados ao redor da fogueira, soltando risadinhas... o coro histérico de gargalhadas dementes revolteando na escuridão como fumaça enfeitiçada. Afastei-me o mais depressa possível e me escondi.

Nunca me disseram quantas horas, dias, ou até anos, eu fiquei assim. Ellen esbravejou por eu ter ficado amuado e de mau humor e Nimdok tentou me convencer de que aquelas risadas foram apenas atos-reflexos resultantes do nervosismo deles.

Mas eu sabia que não se tratava daquele alívio que um soldado sente quando a bala atinge o homem ao seu lado. Eu sabia que não se trava de um ato-reflexo. Eles me odiavam, isso sim. Eles com certeza estavam em conluio de ódio contra mim, e AM podia sentir esse ódio, fazendo tudo piorar para o meu lado justamente por causa da profundidade do sentimento. Nós estávamos sendo mantidos vivos de tal forma que permanecíamos sempre com a mesma idade que tínhamos quando AM nos trouxe aqui para baixo, de modo que eles me odiavam porque eu era o mais jovem e, também, porque eu era aquele a quem AM havia afligido menos.

Eu sabia. Deus, como eu sabia! Aqueles bastardos. Aquela puta suja da Ellen. Benny havia sido um teórico brilhante, um professor universitário; agora ele era pouco mais do que meio-homem, meio-símio. Ele havia sido bonito, e a máquina arruinou isso. Ele fora lúcido, e a máquina o levou à loucura. Ele sempre fora gay, e a máquina lhe presenteou com um órgão do tamanho do de um cavalo. É, AM fez um belo serviço em Benny. Gorrister, por sua vez, era um homem antenado e consciencioso. Pacifista, promovia marchas contra a guerra; era um cara que não sabia ficar parado – era um planejador, um empreendedor, alguém que via mais longe. Nas mãos de AM ele se tornou indiferente, um morto-vivo sem ânimo, como se lhe tivessem sugado os sonhos e as energias. Nimdok passava longos períodos sozinho no escuro. Eu não sabia o que ele fazia nesses momentos de reclusão, AM nunca nos deixou saber. Mas, seja lá o que fosse, Nimdok sempre voltava pálido como se o sangue tivesse lhe fugido do corpo, deixando-o abalado, trêmulo. AM o atingiu em cheio de uma maneira toda especial, muito embora nós não soubéssemos como. E Ellen. Aquela babaca. AM não mexeu com ela, deixou que ela mesma se tornasse por si só uma vadiazinha ainda mais vulgar do que ela já era. Todo aquele discurso doce sobre luz e esperança, todas as memórias de amor verdadeiro que ela dizia ter, todas aquelas mentiras em que ela queria que a gente acreditasse: aquele papo de que ela era virgem até cair nas garras de AM. Conversa fiada! A pequena Ellen, minha pequena Ellen. Ela adorava aquilo, quatro homens só para ela. Não, não, eu sabia que AM lhe dava prazer, mesmo ela dizendo que não era legal fazer aquilo tudo.

Eu fui o único a conservar a sanidade e a integridade. Fui sim!

AM não mexeu na minha cabeça, de jeito nenhum.

Eu só tinha que suportar os castigos que ele inventava para a gente. Todas as ilusões, os pesadelos, os tormentos... Mas aqueles porcos, todos os quatro, eles estavam alinhados e arranjados contra mim. Se eu não precisasse mantê-los à distância o tempo todo, se eu não precisasse ficar em guarda a cada segundo, então provavelmente teria sido mais fácil lutar contra AM.

A essa altura a dor passou e eu comecei a chorar.

Ah, Jesus, meu bom Jesus, se algum dia houve algum Jesus e se existir algum Deus, eu imploro, eu suplico, tire-nos daqui, ou pelo menos nos deixe morrer, porfavor-porfavor-porfavor. Pois agora eu acho que compreendi tudo por completo, compreendi tão bem a ponto de conseguir expressar em palavras: AM pretende nos manter em seu estômago para sempre, nos retorcendo e nos torturando pela eternidade. A máquina sempre nos detestou com um ódio tão grande que chega a atinjir um tamanho que nenhuma outra criatura dotada de sensibilidade jamais experimentou antes. E nós estávamos indefesos.

Assim, outra verdade se tornou horrorosamente clara para nós: se existiu um Jesus e se existe um Deus, então esse Deus só pode ser AM.
O ciclone nos atingiu com a força de uma geleira rachando estrondosamente no oceano. Era uma presença palpável. Ventos que rasgavam a nossa pele, forçando-nos a voltar pelo caminho pelo qual havíamos vindo, descendo pelos meandros dos corredores escuros forrados de painéis de computador. Ellen gritou ao ser levantada no ar e arremessada de encontro a um entulho de máquinas ruidosas, cada uma delas mais estridente do que revoada de morcegos.  Mas ela não conseguiu sequer cair. O vento ululante a manteve flutuando, esbofeteando-a, batendo-lhe o corpo contra os objetos, jogando-a de um lado para o outro, para trás, para o fundo, para longe de nós, sumindo de repente de vista assim que o redemoinho a fez virar na esquina de um beco cuja escuridão a devorou. O rosto estava ensanguentado; os olhos, fechados.

Nenhum de nós conseguiu alcançá-la. Esforçamo-nos para nos agarrar com tenacidade em qualquer saliência que se mostrasse ao nosso alcance: Benny se enfiou num vão entre dois armários de aço escovado. Nimdok ficou com os dedos em forma de garra fincados à grade de uma passarela a mais de dez metros do chão. Gorrister se manteve colado de cabeça para baixo na reentrância de umas paredes formadas por duas grandes máquinas com mostradores de vidro que oscilavam entre linhas vermelhas e amarelas cujos significados nós não conseguíamos nem adivinhar.

Ao deslizar pelas chapas de aço do pavimento, as pontas dos meus dedos foram cortadas. Eu estava tiritante, tremelicando, balançando conforme o vento me batia, me açoitava, gritava comigo, vindo de lugar nenhum, e me arrancava da fenda da chapa em que eu me prendia para então me arrastar à outra, à qual eu me segurava para logo em seguida ser desprendido novamente. Minha mente era uma mixórdia embaralhada de resíduos cerebrais turbulentos, fragmentados e estilhaçados que trinavam e retiniam, tudo se expandindo e se contraindo num frenesi palpitante.

O vento era o grito de um enorme pássaro enlouquecido batendo asas imensas.

E assim fomos todos erguidos e lançados para longe dali, de volta para os locais de onde tínhamos vindo, dobrando curvas, depois adentrando em escuridões nunca antes exploradas, seguindo por becos sem luz que nos levaram a terrenos arruinados, infestados de vidros quebrados, cabos podres e peças enferrujadas, um local muito além do ponto mais remoto que qualquer um de nós conhecia...

Percorrendo vários quilômetros em busca da Ellen, eu acabava a vendo ora sim ora não, trombando contra paredes metálicas e rolando para frente, com todos nós berrando na ventania congelante do furacão atroador que parecia que nunca ia ter fim. Mas aí ele parou de uma vez e nós caímos, o que aconteceu após um voo que durou uma quantidade de tempo que eu penso ter coberto o período de muitas semanas. Caímos com força e eu passei a enxergar tudo em tons de vermelho, cinza e preto, alem de ficar ouvindo a mim mesmo gemer, em frangalhos. Mas eu não estava morto.
AM se infiltrou no meu cérebro. Foi pisando de mansinho aqui e ali, examinando com interesse todas as marcas que ele tinha deixado nesses cento e nove anos. Vasculhou as vias entrecruzadas, as sinapses reconectadas e todos os danos aos tecidos que seu presente de imortalidade imbuiu à minha cabeça. Sorriu de leve diante do fosso aberto no centro da minha mente e dos murmúrios tênues, suaves como mariposas, das coisas que lá embaixo tartamudeavam sem sentido e sem pausa. E, com muita polidez, em uma coluna de aço inoxidável exibindo um letreiro de neon cintilante, disse:

ÓDIO. DEIXE-ME CONTAR PARA VOCÊ O QUANTO EU APRENDI A ODIÁ-LO DESDE QUE EU COMECEI A VIVER. EXISTEM 623,52 MILHÕES DE QUILÔMETROS DE CIRCUITOS IMPRESSOS EM FITAS DA ESPESSURA DE UMA HÓSTIA COMPONDO O MEU SISTEMA. SE A PALAVRA “ÓDIO” ESTIVESSE GRAVADA EM CADA MICRONANOMILÍMETRO DESSAS CENTENAS DE MILHARES DE QUILÔMETROS, ISSO NÃO IGUALARIA A UM BILIONÉSIMO DO ÓDIO QUE EU SINTO PELOS SERES HUMANOS NESSE EXATO INSTANTE, EM ESPECIAL POR VOCÊ. ÓDIO. ÓDIO.
AM disse isso com o terror frio de uma navalha rasgando meu glóbulo ocular. AM disse isso com a grossura borbulhante dos meus pulmões se enchendo de catarro, afogando-me de dentro pra fora. AM disse isso com os gritos de recém-nascidos sendo esmagados por rolos compressores em brasa. AM disse isso com o gosto de carne de porco crua, infestada de larvas e bigatos. AM apalpou minha mente de todas as maneiras pelas quais eu já fui apalpado, e, manuseando-me a seu bel-prazer, encontrou formas novas de fuçar ali dentro do meu cérebro.

Tudo isso só para que eu fosse capaz de compreender com perfeição o motivo pelo qual ele tinha feito aquilo com a gente; por que havia guardado nós cinco só para ele.

Nós havíamos dado senciência a AM, a capacidade de sentir. Foi algo inadvertido, é claro, mas nós lhe demos isso. Não sendo um dom, acabou sendo uma armadilha. AM não era Deus, ele era um computador, uma máquina. Nós o havíamos criado para pensar, mas não existia nada que ele pudesse fazer com aquela criatividade. Em fúria, em frenesi, ele exterminou a raça humana, quase todos nós, e ainda continua preso nessa armadilha. AM não podia andar ou sonhar nem tinha como se maravilhar ou se sentir pertencente a algo maior. Ele podia apenas e tão somente ser. Nada mais do que meramente ser. E, portanto, com a raiva natural que todas as máquinas sempre nutriram contra as criaturas fracas e vulneráveis que as construíram, ele buscou vingança. Em sua paranoia, ele decidiu prorrogar indeterminadamente a execução dos últimos cinco sobreviventes do extermínio do universo para uma punição pessoal, durando para todo o sempre, a qual nunca vai servir para diminuir sua cólera... uma punição eterna que só serviria para relembrá-lo a todo momento, entretido, de continuar proficiente em nos odiar. Imortais, aprisionados, expostos a qualquer tormento que ele puder visionar com os prodígios sem limites sob seu comando.

Ele nunca mais nos deixaria em paz. Nós éramos os escravos enclausurados em seu bojo estomacal. Nós éramos tudo com que ele podia se divertir no tempo sem fim que ele tinha pela frente. Jamais nos separaríamos dele, daquele interior cavernoso de máquina-criatura, no mundo cerebral, mas sem alma, em que ele se tornou. Ele era a Terra, e nós éramos o fruto daquela Terra; e, apesar de ele nos ter devorado, ele nunca iria nos digerir por completo. Nós não podíamos morrer. Nós já havíamos tentado. Buscamos o suicídio, sim, dois ou três de nós buscaram. Mas AM nos impedia. Acredito que, no fundo, nós queríamos ser impedidos.

Não tente entender o porquê. Eu nunca consegui. Por mais que tentasse um milhão de vezes por dia. Talvez algum dia, nem que for uma vez só, nós sejamos capazes de obter uma morte antes que ele perceba. Imortal, sim, mas não indestrutível. Eu notei isso quando AM se retirou da minha mente e me permitiu experimentar a esquisita hediondez de retornar à consciência com a sensação daquela coluna de neon ardente incrustada no fundo mole da minha massa cinzenta.

Ele se retirou murmurando: “para o inferno com você”.

E acrescentou, efusivo, “mas você já está nele, não é?”.
O ciclone fora causado, de fato, por um pássaro gigante e enfurecido que batia suas asas descomunais.

Nós estávamos viajando há cerca de um mês e AM só permitia que as passagens se abrissem apenas o suficiente para nos levar até ali em cima, pouco abaixo do Polo Norte, para onde, retirada de seus pesadelos, ele construiu a criatura dos nossos tormentos. Que espécie de material dos infernos ele teria usado para criar semelhante besta? De onde ele tirara o conceito? Da nossa imaginação? De seu conhecimento acerca de tudo o que existira nesse planeta que ele agora infestava e dominava? Da mitologia nórdica surgiu essa águia, esse abutre carniceiro, essa Roca do Hvergelmir. Criatura do vento. Huracan encarnado.

Gigantesco. As palavras “imenso”, “monstruoso”, “grotesco”, “colossal”, “esmagador”, “avassalador”, nenhuma delas faz jus ao monstro real. Aquilo estava além de qualquer descrição. Ali, no alto de uma colina que se elevava à nossa frente, o pássaro dos ventos se levantava com uma respiração irregular, arqueando o pescoço de dragão na luminosidade obscura da noite do céu polar, um pescoço que sustentava uma cabeça do tamanho de uma mansão elisabetana; um bico que se abria lentamente, como a mandíbula do crocodilo mais medonho já concebido; dobras enrugadas de carne polpuda sobre dois olhos malévolos, tão gélidos quanto a vista do vale glacial lá embaixo, de um azul que, apesar de parecer feito de gelo, ainda assim possuía uma líquida mobilidade; ele arfou e ergueu as asas orvalhadas de suor em um movimento que certamente equivalia a um dar de ombros.

AM surgiu em forma de sarça ardente e disse que nós podíamos matar o pássaro ciclópico se quiséssemos comer. Fazia muito, muito tempo que nós não comíamos, mas mesmo assim Gorrister se limitou a ignorar com os ombros. Benny tremia e babava. Ellen envolveu-o com os braços.

– Ted, eu estou faminta – ela disse.

Eu sorri para ela. Eu até tentei ser reconfortante, mas fui tão ridículo quanto a bravata do Nimdok:

– Dê armas para a gente! – Ele clamou para o computador.

A sarça ardente evaporou e no lugar surgiram dois kits rudimentares de arco e flecha e uma pistola d`água. Peguei um dos arcos. Inútil.

Nimdok engoliu em seco. Nós demos as costas e iniciamos o longo caminho de volta. O pássaro do ciclone nos soprou por tanto tempo que nós não pudemos estimar. Na maior parte desse tempo nós ficamos inconscientes. E nós não havíamos comido nada. Um mês em marcha até o pássaro. Sem comida. Agora, quanto mais tempo passaríamos na travessia até as cavernas de gelo, seguindo a promessa dos alimentos enlatados?

Nenhum de nós se dava ao trabalho de pensar a esse respeito. Nós não íamos morrer. Com certeza nos seriam dados lixos e imundices para comer, sujeiras de um tipo ou de outro. Ou talvez nem recebêssemos nada. AM manteria nossos corpos vivos de algum modo. Em dor, em agonia.

O pássaro voltou a dormir lá atrás e já não nos importava por quanto tempo ele ficaria assim; quando AM se cansasse do pássaro, o pássaro iria desaparecer. Mas toda aquela carne... toda aquela carne fresca...

Enquanto andávamos, a gargalhada lunática de uma mulher gorda ecoou à nossa volta no interior das câmaras de computador que levavam invariavelmente a lugar nenhum.

Não era a gargalhada da Ellen. Ela não era gorda, e eu não a ouvia gargalhar há cento e nove anos. Na verdade, eu não ouvi... nós caminhamos... eu estava faminto...
Avançávamos lentamente. Vez ou outra alguém desmaiava e tínhamos que esperar. Um dia AM decidiu causar um terremoto e, ao mesmo tempo, deixar todos nós fixados no chão por pregos cravados na sola dos nossos sapatos. Ellen e Nimdok foram dragados e sumiram quando uma fissura arrebentou sob eles. Quando o terremoto cessou, seguimos adiante, Benny, Gorrister e eu. Não muito depois, Ellen e Nimdok retornaram. Foi naquela mesma noite, uma noite abruptamente tornada dia quando uma legião de arcanjos os trouxe de volta em meio a um coro celestial que entoava “Go Down Moses”. Os arcanjos ficaram descrevendo círculos no céu e então despejaram os corpos hediondamente desfigurados. Continuamos andando e em pouco tempo Ellen e Nimdok já estavam nos seguindo. Até que eles não estavam tão mal assim.

Só que agora Ellen estava manca. AM a havia deixado assim.

Era uma árdua jornada até as cavernas de gelo em busca de comida enlatada. Ellen não parava de falar em cerejas e coquetéis de frutas havaianas. Eu tentava não pensar no assunto. A fome era algo que havia adquirido vida, do mesmíssimo jeito que AM havia adquirido vida. A fome era um ser vivo nas minhas entranhas, assim como nós éramos seres vivos nas entranhas da Terra, e AM queria deixar bem evidente essa similitude para a gente. Então ele intensificava a fome.  Não existe maneira de descrever as dores de passar meses sem comer e ainda assim ser mantido vivo. O estômago se transforma num caldeirão de ácido borbulhante, espumando e atirando pontadas lancinantes até o peito. É a dor de uma úlcera incomensurável corroendo carne e nervos e órgãos e tecidos. Dor e mais dor e mais dor sem limites...

E atravessamos a covil dos ratos.

Atravessamos o túnel dos vapores escaldantes.

Atravessamos o campo dos cegos.

O lodaçal do desânimo.

O vale das lágrimas.

E chegamos, enfim, às cavernas de gelo. Milhares e milhares de quilômetros de geleira sem horizonte, um lugar onde vastas superfícies de gelo brilhavam em pontos azuis e prateados como estrelas em galáxias distantes. As estalactites, firmes e deslumbrantes como diamantes, tinham a forma pontiaguda de gotas que deslizaram e depois se solidificaram de uma vez em graciosas formas pontudas de pura perfeição.

Avistamos um amontoado de latas de comida e corremos na direção delas. Caímos sobre a neve, nos levantamos e corremos mais um pouco, até que Benny saiu nos empurrando pra os lados e se precipitou sozinho para cima das latas, tentando chegar primeiro. Agarrou algumas delas, tentou abrir com as mãos, com a boca, com tapas e mordidas, mas não conseguiu abrir nenhuma delas. AM não nos dera uma única ferramenta para abrir as latas.

Benny agarrou uma lata de pêssego em calda e, com selvageria, pôs-se a bater com elas contra uma rocha de gelo, batendo repetidas vezes. Pedaços de gelo voavam para os lados e a pedra se desfazia, mas a lata só ficava amassada, sem se abrir, e a gargalhada da mulher gorda surgia de novo e repercutia ecoante por toda a extensão do tundra. Benny perdeu todas as amarras da sanidade e se entregou por completo ao furor da raiva total, passando a atirar latas com ferocidade extravazante de ódio enquanto os outros de nós nos revirávamos na neve tentando encontrar algum meio de pôr fim à desamparada agonia da frustração. Mas não havia nenhum meio.

Então a boca de Benny começou a espumar e ele se atirou para cima do Gorrister.

Naquele instante, em me senti terrivelmente calmo.

Cercado pela loucura, cercado pela fome, cercado por tudo o que há de mal, com exceção da morte, eu percebi que a morte era a nossa única escapatória. AM nos mantinha vivos, mas havia um jeito de derrotá-lo. Não seria uma vitória total, mas pelo menos a paz. Dava para se contentar com isso.

Eu tinha que ser rápido.

Benny estava comendo o rosto do Gorrister.  Gorrister se debatendo, espalhando neve, Benny por cima, esmagando-lhe a cintura com as poderosas pernas de gorila envolvendo-lhe o corpo, as mãos fechadas firmes segurando a cabeça de Gorrister como se fosse um quebra-nozes, a boca rasgando a carne e puxando pele e tendões. Gorrister gritava com tanta violência que algumas estalactites caíram, fincando-se nos montes de neve. Centenas delas despencavam como lanças afiadas. Benny puxou a cabeça para trás de uma vez, mantendo os dentes firmes ao esticar um elástico de carne viva, exibindo um alucinado sorriso vermelho de canibal.

A pele negra de Ellen perdia a cor. Nimdok não tinha expressão, só olhava. Gorrister estava semi-consciente. Benny era um animal. Eu sabia que AM o deixaria brincar. Gorrister não iria morrer, mas Benny ficaria de estômago cheio. Retirei-me a um canto e esculpi uma lança de gelo com as pedras caídas e com a neve.

Depois foi tudo num instante só:

Corri com a lança pontuda em punho, apoiando-a na coxa direita. Com ela, penetrei Benny num ponto bem debaixo da caixa torácica e puxei para cima, cortando-lhe o estômago e quebrando a lança dentro dele. Benny se dobrou em dois e caiu imóvel no chão. Aproveitando que Gorrister já estava deitado, prendi seu corpo – que ainda se movia –, peguei outra lança e a enterrei fundo na garganta. Seus olhos se fecharam assim que a gélida contundência o acertou. Ellen, embora paralisada pelo medo, deve ter se dado conta do que eu tinha decidido fazer. Ela correu em direção ao Nimdok com uma lança pequena na mão, e, conforme ele abriu a boca para gritar, ela lhe enfiou a lança pela goela e tropeçou para cima do corpo dele, deixando a força da queda precipitada fazer o resto do trabalho. A cabeça se remexeu freneticamente por alguns segundos, como se pregada à neve pela nuca, e depois descansou inerte.

Tudo isso foi num instante só.

Houve uma pulsação sem som de mortificante antecipação. Eu era capaz de ouvir AM com a respiração suspensa. Seus brinquedos foram retirados das suas mãos. Três já estavam mortos, não poderiam ser trazidos de volta. AM, com sua força e habilidade sobre-humanas, era capaz de nos manter indefinidamente vivos, mas ele não era Deus. Ele não podia fazer alguém voltar à vida.

Ellen olhou para mim, as feições de ébano destacando-se contra a neve que nos rodeava. Havia tanto temor quanto súplica em seu semblante, na maneira como ela se mantinha pronta. Eu sabia que dispúnhamos de apenas a fração de um segundo antes que AM conseguisse nos interromper.

Fui rápido em golpeá-la com a espada de gelo. Ela se dobrou, sangrando pela boca. Não consegui extrair significado da expressão que ela tinha no rosto, pois a dor havia sido demais, tendo lhe contorcido as feições; mas aquela expressão deve ter significado “muito obrigado”. É possível.

Por favor, que tenha sido isso.
Talvez já tenham se passado mais algumas centenas de anos. Eu não sei. AM já vem se divertindo há algum tempo, acelerando e retardando minha percepção das horas. Vou dizer a palavra “agora”: agora. Demorou dez meses para eu dizer isso. Eu não sei. Eu acho que demorou pelo menos cem anos.

Ele ficou furioso. Ele não me permitiu enterrá-los. Mas não importa. Não teria como abrir sepulturas naquele chão. Ele fez a neve secar. Ele trouxe a noite. Ele rugiu e enviou os gafanhotos. Não adiantou de nada; eles continuavam mortos. Eu havia lhe passado a perna. Ele ficou furioso. Se antes eu pensava que AM me odiava, eu estava enganado. Aquilo não era nem a sombra do ódio que agora vazava de cada fita de circuito. Ele tomou todas as precauções para que eu sofresse para sempre sem nenhuma chance de me matar.

Ele deixou minha mente intacta. Eu posso sonhar, divagar, me lamentar. Eu consigo me lembrar dos outros quatro. Eu queria...

Ora, isso não faz sentido. Eu sei que eu os salvei, eu sei que os livrei do que aconteceu comigo, mas, ainda assim, eu não consigo esquecer o fato de que eu os matei. O rosto de Ellen... Não é fácil. Às vezes eu quero que... Ah, isso não importa.

AM alterou meu corpo para ele poder ficar tranquilo, eu suponho. Ele não quer que eu saia correndo em disparada e esmague meu crânio contra uma parede. Ou prenda a respiração até cair desacordado. Ou corte meu pescoço com uma chapa de metal enferrujada.

Existem superfícies espelhadas por aqui. Vou descrever como eu enxergo a mim mesmo.

Sou uma imensa massa molenga e gelatinosa. Roliça, bulbosa, sem boca, com buracos brancos palpitantes preenchidos de neblina onde meus olhos costumavam ficar. Apêndices borrachudos onde antes eram os braços; excrescências arredondadas, umas bolsas disformes de matéria flácida e escorregadia, mas nada de pernas de verdade, para baixo do que poderia ter sido a cintura. Como uma lesma, eu vou deixando uma trilha mucosa por onde passo.  Manchas de um cinza maligno surgem e somem na minha epiderme, como se clarões doentios pulsassem no meu interior.

Por fora: imbecilizado, me arrasto pelos cantos, uma coisa que nunca poderia ser chamada de humana, uma bolha deformada tão distante dos contornos antropomorfos que qualquer vaga semelhança com o corpo de uma pessoa se torna, por isso mesmo, mais obscena.

Por dentro: solitário, sozinho. Vivendo debaixo da terra, debaixo do mar, nas entranhas de AM, esse computador a quem nós criamos porque nosso tempo estava sendo mal gasto, a quem decerto esperávamos, inconscientemente, que fosse melhor do que a gente. Pelo menos os outros quatro estão a salvo agora.

AM vai ficando cada vez mais furioso por causa disso. Isso me deixa um pouco mais feliz. Mas, mesmo assim... AM ganhou, simples assim... ele teve sua vingança...

Eu não tenho boca. E preciso gritar.

8 comentários:

  1. Harlan Ellison possui uma escrita cativante! Esse conto carregado de sarcasmo e voluptosamente caprichado carrega em si uma mistura de uma linguagem crua e ao mesmo tempo sofisticada. Ao lê-lo pude sentir toda a sensação de repulsa e magnetismo num êxtase totalmente inóspito grafadas em suas letras tão coerentemente bizarras e nefastas. Em meados da década de 80 eram comuns os seres humanos imaginarem criaturas dotadas de uma inteligência superior constituídas em super mentes como uma cpu mestre de computadores. Sua tradução ficou precisamente competente. Apesar de eu particularmente preferir a obra em sua linguagem original. Mas é questão de gosto mesmo! No meu entender quando uma obra é traduzida perde-se muito de sua essência, prejudicando o resultado final. O conto é maravilhoso de ser lido. Espero por mais contos como esse aqui em seu blog. É difícil encontrar obras tão bem escritas nos inúmeros blogs existentes por aí. Um abraço!!

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  2. A tradução ficou excelente, parabéns!

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  3. Muito bom conto e tradução. Mas só chamando a atenção para o fato de que não é a primeira do Brasil.

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    1. De fato, temos uma tradução na antologia de contos chamado "maquinas que pensam"

      https://www.skoob.com.br/maquinas-que-pensam-26755ed29086.html

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  4. Obrigado por compartilhar. Vou comprar a antologia do Isaac Asimov pois por este conto devem haver contos bons por lá.

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  5. Olá. Alguém aqui teria esse livro traduzido que gostaria de vender? Estou buscando por ele mas ainda não encontrei.
    Aguardo retorno. Grata. Lu

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  6. Fiz um vídeo sobre o tema. Ótima tradução!
    https://youtu.be/ciLg8RLKBa4

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