domingo, 29 de julho de 2018

CONTO: OS OUTROS, de Neil Gaiman


OS OUTROS – Neil Gaiman
Tradução de Melvin Menoviks

“O tempo é fluído aqui”, disse o demônio.

Ele soube que era um demônio no momento em que o viu. Ele simplesmente sabia, assim como sabia que aquele lugar era o Inferno. Não havia qualquer outra coisa que qualquer um deles pudesse ser.

A sala era comprida, e, bem ao final, o demônio aguardava ao lado de um braseiro fumegante. Uma multiplicidade de objetos pendia das paredes cinzentas de pedra, objetos do tipo que não seria sábio ou tranquilizador inspecionar de perto. O teto era baixo, e o chão, de aparência sinistramente insubstancial.

“Aproxime-se”, disse o demônio, e ele se aproximou.

O demônio era raquítico e não usava roupas. Estava coberto por várias cicatrizes e parecia ter sido esfolado no passado distante. Não possuía orelhas, nem sexo. Seus lábios eram finos e ascéticos, e os olhos eram mesmo os olhos de um demônio: eles haviam visto muito e ido longe demais, e sob sua mira o homem se sentiu menos importante do que uma mosca.

“O que acontece agora?”, o homem perguntou. 

“Agora”, disse o demônio, numa voz que não carregava nem sofrimento, nem satisfação, apenas uma pavorosa apatia resignada, “você será torturado”.

“Por quanto tempo?”

O demônio balançou a cabeça e não deu resposta. Caminhou vagarosamente, alinhado à parede, olhando primeiro para um dos dispositivos que pendia ali, e depois para outro. No final do corredor, ao lado da porta fechada, estava uma chibata do tipo gato-de-nove-caudas feita de fio de cobre desgastado. O demônio pegou o instrumento com os três dedos de uma de suas mãos e caminhou de volta, carregando-o com reverência. Depositou as pontas dos fios no braseiro e ficou encarando conforme eles iam sendo aquecidos.

“Isso é desumano”, bradou o homem.

“Sim.”

As extremidades metálicas da chibata adquiriam uma terrificante incandescência alaranjada.

Assim que o demônio levantou o braço para desferir o primeiro golpe, ele disse: “No tempo certo, até mesmo deste momento você vai se lembrar com carinho”.

“Você é um mentiroso.”

“Não”, disse o demônio. “A próxima parte”, ele explicou um segundo antes de descer a chibatada, “é pior”.

Então as pontas de cobre aterrissaram nas costas do homem com um zunido e um chiado, rasgando as roupas caras, queimando e lacerando e retalhando com o ataque, e, não pela última vez neste lugar, ele gritou.

Havia duzentos e onze apetrechos de tortura nas paredes daquela sala, e com o tempo ele iria experimentá-los todos.

Quando, por fim, o compressor de cabeça, que o homem veio a conhecer intimamente, foi limpado e recolocado na ducentésima décima primeira posição, então, através de lábios dilacerados, ele arfou: “e agora?”.

“Agora”, disse o demônio, “a verdadeira dor começa”.

E começou.

Todas as coisas que ele havia feito, mas que teria sido melhor não fazer. Todas as mentiras que ele havia contado – contado para si mesmo, ou contado para os outros. Cada pequena ferida, assim como todas as feridas grandes. Cada uma foi extraída dele, detalhe a detalhe, centímetro a centímetro. O demônio arrancou toda a proteção do esquecimento, despiu toda a verdade, e isso dói mais do que qualquer outra coisa.

“Diga-me o que você pensou quando ela foi embora”, disse o demônio.

“Eu pensei que o meu coração estava partido”.

“Não”, disse o demônio, sem ódio, “você não pensou isso”. Fitou-o com olhos sem expressão, e o homem se sentiu obrigado a desviar o olhar.

“Eu pensei ‘agora ela nunca vai saber que eu estava dormindo com a irmã dela’.”

O demônio escrutinou toda a sua vida, momento a momento, instante horrível a instante horrível. Durou uma centena de anos, ou talvez um milênio – eles tinham todo o tempo que sempre houve, ali naquela sala cinzenta – e, quando o fim se aproximava, ele percebeu que o demônio estava certo. A tortura física havia sido mais amena.

E então terminou.

E, uma vez terminado, começou de novo. Havia um autoconhecimento ali que não existia na primeira vez, o que, de alguma forma, tornou tudo pior.

Agora, conforme falava, ele odiava a si mesmo. Não havia mais mentiras, nem evasão, nem espaço para nada, exceto dor e raiva.

Ele falava. Ele não chorava mais. E, quando terminou, mil anos depois, ele rezou para que o demônio fosse à parede e trouxesse a faca de esfolamento, ou a pera de estrangulação, ou os parafusos.

“De novo”, disse o demônio.

O homem começou a gritar. Ele gritou por um longo tempo.

“De novo”, disse o demônio, como se nada tivesse acontecido, quando terminou mais uma vez.

Era como descascar uma cebola. Dessa vez, através da própria vida, ele aprendeu sobre consequências. Ele aprendeu sobre os resultados das coisas que ele havia feito; coisas para as quais ele estivera cego quando as havia praticado; as formas pelas quais ele havia machucado o mundo; os estragos que ele havia causado em pessoas que ele nunca havia conhecido, visto ou encontrado. Foi a lição mais difícil até então.

“De novo”, disse o demônio, mil anos depois.

O homem se agachou no chão, ao lado do braseiro, balançando-se suavemente, os olhos fechados, e contou a história da própria vida, re-experimentando-a a cada palavra, do nascimento à morte, sem mudar nada, não deixando nada de fora, encarando tudo. Ele abriu o coração.

Quando terminou, ficou sentado, olhos fechados, aguardando a voz dizer “de novo”, mas nada foi dito. Ele abriu os olhos.

De vagar, levantou-se do chão. Estava sozinho.

No canto mais afastado da sala havia uma porta, e, enquanto ele a olhava, a porta se abriu.

Um homem entrou na sala. Havia terror na face do homem, além de orgulho e arrogância. O homem, que usava roupas caras, deu alguns passos hesitantes e então parou.

Quando viu o homem, entendeu.

“O tempo é fluído aqui”, ele disse ao recém-chegado.

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