segunda-feira, 17 de agosto de 2015

"The Lighthouse" – O conto inacabado de Edgar Allan Poe

Ao morrer, aos 40 anos, em condições misteriosas que permanecem inexplicadas até os dias de hoje, Edgar Allan Poe deixou um legado ímpar na literatura mundial: apesar de pequena no número de páginas, a obra desse poeta e ficcionista norte-americano proporcionou influências decisivas no desenvolvimento da literatura e na própria maneira de se compreender a arte, concebendo bases indispensáveis para o surgimento das histórias de detetives como as conhecemos hoje e para o reconhecimento do gênero "terror" em nossa cultura. A força da obra de Poe no imaginário de todas as gerações que lhe sucederam é incomensurável, e poucos escritores são tão respeitados e estudados quanto ele. A mente desse perturbado gênio das letras e da imaginação foi a responsável pela criação de contos e poemas famosíssimos e de inegável qualidade literária, como é o caso de "O Corvo", "O Gato Preto", "Assassinatos na Rua Morgue", "O Coração Delator", "William Wilson" e tantos mais.

O que a maioria das pessoas não sabe sobre ele, no entanto, é que, ao se retirar deste mundo, Edgar Allan Poe aqui deixou um conto incompleto e sem nome, hoje conhecido como "The Lighthouse". Apesar de ele ser muito intrigante e passível de múltiplas especulações sobre como teria sido o desfecho escolhido pelo autor, até hoje nunca me deparei com uma tradução para a língua portuguesa dessa história que Poe não viveu o suficiente para conseguir terminar. Para suprir essa lacuna grave – e também por querer conhecer mais de perto as dificuldades com que um tradutor tem de lidar em seu ofício –, decidi eu mesmo fazer a tradução do conto inacabado de Edgar Allan Poe.

Ao verter o texto para o Português, busquei a maior fidelidade possível ao original e mantive enorme respeito às particularidades do estilo de Poe, sempre levando em consideração que se trata de um manuscrito que não foi revisado pelo autor e que nem sequer se sabe se ele tinha a intenção de concluir e publicar. Mesmo que ele não tenha pretendido levá-lo a público, o fragmento a seguir tem grande valor histórico e é capaz de nos proporcionar a interessante experiência de analisar com maior proximidade o estranho e minucioso método de criação de Poe.

Um observação importante antes de se ler "The Lighthouse": como, muito provavelmente, os parágrafos abaixo constituíam apenas um esboço para o conto que Poe pretendia escrever, e como eu não fiz alterações neles que não aquelas absolutamente necessárias no processo de tradução, o leitor poderá encontrar algumas falhas de continuidade e passagens de difícil compreensão, mas nada que afete severamente a leitura ou minimize o gênio do grande escritor que os concebeu.
Edgar Allan Poe – A TORRE DO FAROL
Tradução de Melvin Menoviks
1º de janeiro de 1796.

Hoje – meu primeiro dia na torre do farol –, faço este registro de abertura em meu Diário, conforme compactuado com De Grät. Tão regularmente quanto eu for capaz de manter o diário, assim o farei – mas não há como saber o que pode acontecer a um homem completamente só, como estou agora – talvez eu fique doente, ou pior . . . . . Que seja! O barco da patrulha costeira escapou por pouco das ondas – mas por que me preocupar com isso, se estou aqui, em perfeita segurança? Meu espírito já começa a se reavivar com o mero pensamento de estar – pelo menos uma vez na vida – totalmente sozinho; afinal, Netuno, é claro, generoso como ele é, não pode ser considerado como “sociedade”. Quisera os céus que eu tivesse encontrado na “sociedade” metade da confiança que há nesse pobre cachorro: – fosse esse o caso, “sociedade” e eu talvez nunca teríamos nos afastado – mesmo pelo ano . . . O que mais me surpreende é a dificuldade que De Grät teve em conseguir a designação para mim – para mim, um nobre do reino! Não consigo acreditar que a Assembleia tenha tido alguma dúvida quanto à minha habilidade em manejar o farol. Um único homem já fez isso antes – e quase tão bem quanto os três que normalmente são designados para a tarefa. A obrigação é um grande nada, e as instruções por escrito são extremamente claras. Não serviria de nada deixar Orndoff me acompanhar. Eu nunca deveria ter dado prosseguimento ao meu livro enquanto ele estava próximo a mim, com sua fofoca intolerável – para não mencionar os chavões e a tagarelice sem fim. Além disso, eu queria ficar sozinho . . . . . . É estranho que eu nunca tenha notado, até este momento, a sonoridade desalentadora que esta palavra tem – “sozinho”! Eu poderia imaginar que há alguma peculiaridade nos ecos destas paredes cilíndricas – mas, oh, não! – isso é besteira. Acredito que eu vou ficar nervoso com o meu isolamento. Isso é inaceitável. Eu ainda não me esqueci da profecia de De Grät. Agora, vou movimentar a luz do farol e dar uma boa olhada para “ver o que eu consigo ver” . . . . . . . . . . . . . . . Para ver o que eu consigo ver, de fato! – não muito. Creio que as ondas estão diminuindo um pouco – mas o barco costeiro ainda assim vai ter uma dura viagem de volta para casa. Ele dificilmente vai ser visto em Norland antes do meio-dia de amanhã – e isso não significa mais do que um trajeto de 190 ou 200 milhas.

2 de janeiro.

Passei o dia de hoje em uma espécie de êxtase que considero impossível de descrever. Minha paixão pela solidão dificilmente poderia ter sido mais bem gratificada. Eu não diria satisfeita, pois acredito que nunca ficarei saciado de delícias como as que experimentei hoje . . . . . . . . . O vento ululou pela madrugada, e, à tarde, o mar desceu bastante . . . . . Nada para ser visto, mesmo com o telescópio, além do oceano e do céu, com uma ou outra gaivota.

3 de janeiro.

Uma calma sepulcral durante todo o dia. Próximo ao anoitecer, o oceano se assemelhava muito a um espelho. Era possível ver algumas algas no mar, mas, além delas, absolutamente nada o dia todo – nem mesmo a menor partícula de uma nuvem. . . . . . . . Ocupei-me de explorar a torre do farol . . . . Trata-se de uma torre muito alta – pelo o que eu considero do que exige de mim quando eu tenho de subir suas escadas intermináveis – não mais do que 160 pés, devo dizer, da marca da água na maré-baixa até o topo da torre. Da parte mais baixa de dentro da torre, contudo, a distância até o cume é de 180 pés, pelo menos: – pois o chão está há 20 pés abaixo da superfície do mar, mesmo durante a maré-baixa . . . . . . Parece-me que o interior oco da parte inferior da torre deveria ter sido preenchida com alvenaria sólida. Indubitavelmente, dessa maneira a construção toda teria se tornado mais segura: – mas por que estou pensando nisso? Uma estrutura como essa é segura o bastante sob quaisquer circunstâncias. Eu deveria me sentir a salvo, aqui, mesmo durante o mais violento dos furacões – e eu tenho ouvido os marinheiros dizerem, de vez em quando, que, com um vento oriundo do sudoeste, o mar aqui sobe mais do que em qualquer outro lugar, com a única exceção da abertura ocidental do Estreito de Magalhães. Nenhum simples mar, no entanto, pode causar qualquer abalo a estas paredes erigidas a ferro sólido – que, a 50 pés da marca da água na maré-alta, tem quatro pés de espessura . . . . . . . . As bases nas quais a estrutura se sustenta parecem estar se esfarelando. . . . . .

4 de janeiro.
[Aqui termina o manuscrito]
***
Curiosidades:

– Não se sabe se Poe tinha a intenção de terminar o conto, visto que só foram encontradas quatro paginas dele, e nem ao menos se pode afirmar com certeza que seria um conto, e não uma novela ou um romance. Ainda assim, os elementos narrativos e estilísticos observados no fragmento nos levam a acreditar que seria mesmo uma narrativa curta, no estilo predominante na obra do autor;

– Como havia bastante espaço para mais texto no final da última página do manuscrito original, presume-se que o conto estava realmente inacabado, e não perdido, como se poderia cogitar;

– O título em inglês, que quer dizer algo como "O Farol" ou "A Torre do Farol", foi estabelecido pelo crítico literário George E. Woodberry, que primeiro o publicou, em 1909, no segundo volume do livro The Life of Edgar Allan Poe. Apesar de não ter sido escolhido pelo autor, tal título tem sido plenamente aceito pelos editores e estudiosos da obra de Poe;

– O biógrafo Kenneth Silverman acredita que Poe tenha começado a escrever o conto em algum ponto entre maio e agosto de 1849, cerca de dois meses antes de sua morte;

– Robert Bloch, o autor do livro Psicose (que deu origem ao clássico filme de mesmo nome dirigido por Alfred Hitchcock), escreveu uma versão completa de "The Lighthouse", inventando-lhe todo um desenvolvimento e um desfecho. Contudo, esse conto nunca foi publicado no Brasil, e nem mesmo na internet eu o encontrei para poder compartilhar no blog;

– As principais características do estilo de Edgar Allan Poe podem ser observadas em "The Lighthouse": o narrador inominado em primeira pessoa; o recorrente tema do isolamento; a relação ambígua de felicidade e pavor estabelecida entre o narrador e a solidão; a aversão pela sociedade e uma tendência congênita ao intimismo; a exploração psicológica de um personagem atormentado, com beiras à paranoia; a existência de um presságio de mau agouro, com perspectivas a uma desgraça iminente; grande apego aos detalhes e à descrição pormenorizada de objetos, situações e estados de espírito; uso excessivo do travessão e do ponto de exclamação; etc.;

– O texto original, em inglês, de "The Lighthouse", pode ser lido clicando aqui.

7 comentários:

  1. Está muito bem traduzido, que beleza , gostei demais!! Um achado de grande valia para os apreciadores de Poe.

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigado, Anamaria! Não sou tradutor profissional, mas quis me desafiar nessa tradução para aprender com a experiência e para trazer ao público da nossa língua esse texto quase desconhecido do Poe. Fico feliz que você tenha gostado!

    ResponderExcluir
  3. Adoreiii o post! Vi um filme ontem sobre esse conto, mas não sabia desse conto e o fato de ser inacabado explica o final um pouco (mesmo deixando muitas coisas em aberto).
    Gostei de conhecer o conto em português, vou ler o original também.
    Beijos <3

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pelos elogios, Paula! Fiquei curioso, qual é o filme?

      Excluir
  4. Adoreiii o post! Vi um filme ontem sobre esse conto, mas não sabia desse conto e o fato de ser inacabado explica o final um pouco (mesmo deixando muitas coisas em aberto).
    Gostei de conhecer o conto em português, vou ler o original também.
    Beijos <3

    ResponderExcluir
  5. Que primor! Conto muito bem traduzido, todo o ambiente lúgubre e a premonição de algo prestes a acontecer passa através do papel. Fiquei curiosa para ler a versão completa do autor de Psicose. Parabéns!

    ResponderExcluir