quarta-feira, 3 de outubro de 2018

CONTO: O VERÃO INTEIRO EM UM ÚNICO DIA, de Ray Bradbury

Ray Bradbury, autor dos clássicos Fahrenheit 451 e As Crônicas Marcianas, apesar de já ter sido classificado como o maior escritor de ficção científica do mundo, descrevia a si mesmo de uma forma bem mais simples: “sou um contador de histórias. Isso é tudo o que eu já tentei ser”. Ainda que suas narrativas normalmente tenham por cenário o espaço sideral e planetas distantes, seus personagens são essencialmente humanos, com emoções e sentimentos palpavelmente humanos. Por meio dessa conexão entre o imaginário e o real, a ficção de Ray Bradbury instiga o leitor a questionar para onde estamos nos dirigindo e a pensar sobre o que podemos aprender a respeito de nós mesmos. O conto abaixo, uma de suas melhores produções, é uma fábula atemporal de tocar o coração.

***
O VERÃO INTEIRO EM UM ÚNICO DIA – Ray Bradbury
Tradução de Melvin Menoviks
“Pronto.”

“Pronto.”

“Agora?”

“Falta pouco.”

“Os cientistas têm mesmo certeza? Vai acontecer hoje? Vai?”

“Olhe, olhe; veja você mesmo!”

As crianças apertavam-se como rosas e ervas daninhas, todas misturadas, olhando para o sol encoberto.

Chovia.

Estava chovendo por sete anos; milhares após milhares de dias do começo ao fim preenchidos só com chuva, com os batuques e jorros de água, com a doce queda de cristal de aguaceiros ininterruptos e a concussão de tempestades tão fortes que eram maremotos trazidos à terra. Mil florestas haviam sido derrubadas pela chuva e crescido mil vezes mais para serem derrubadas de novo. E é assim que a vida sempre fora no planeta Vênus, e é ali que se encontrava a sala de aula dos filhos dos homens e das mulheres que vieram para o mundo de chuva para estabelecer civilização e viver suas vidas.

“Está parando, está parando!”

“Sim, sim!”

Margot distanciou-se delas, daquelas crianças que não eram capazes de se lembrar de uma época em que não havia só chuva e chuva e mais chuva. Elas tinham apenas nove anos de idade, e se é que existira algum dia, setes anos atrás, em que o sol aparecera por uma hora e exibira sua face para o mundo atônito, elas não eram capazes recordar. Algumas vezes, à noite, ela os ouvia se remexendo e sabia que estavam sonhando e rememorando ouro ou giz de cera amarelo ou uma moeda grande o bastante para comprar o mundo inteiro. Ela sabia que eles pensavam se lembrar de um calor aconchegante, como que um rubor quente na face, no corpo, nos braços, nas pernas e nas mãos trêmulas. Mas eles sempre acordavam com o tamborilar entrecortado, o interminável cair de pérolas de colares sobre o telhado, sobre o pavimento, os jardins e a floresta, e com isso seus sonhos iam embora.

Ontem o dia todo eles haviam lido na sala de aula sobre o sol. Sobre como ele se parecia com um limão e o quanto ele era quente. Eles haviam escrito pequenas histórias e ensaios e poemas como este:

Eu acho que o sol é uma bela e forte tocha
Ou uma flor que só por uma hora desabrocha.

Esse era o poema de Margot, lido em voz baixa para a sala imóvel enquanto a chuva caía lá fora.

“Ah, não foi você que escreveu isso!”, protestou um dos garotos.

“Foi sim”, disse Margot. “Foi sim”.

“William!”, repreendeu a professora.

Mas isso havia sido ontem. Agora a chuva ia perdendo força e as crianças se espremiam contra as janelas espessas.

“Onde está a professora?”

“Ela já vai voltar.”

“É melhor ela se apressar, senão vai perder!”

Eles estavam em polvorosa, como uma roleta fervilhante, todos se amontoando e esbarrando uns nos outros.

Margot estava sozinha. Ela era uma menina muito frágil que aparentava ter ficado perdida sob a chuva por vários anos, e também parecia que a chuva havia levado embora o azul de seus olhos, o vermelho de sua boca e o amarelo de seus cabelos. Ela era uma velha fotografia empoeirada em um álbum, uma imagem esmaecida, e, nas poucas vezes em que falava, sua voz era um fantasma. Agora ela estava ali, separada dos demais, fitando a chuva e o mundo molhado e barulhento atrás do vidro enorme.

“Para o que você está olhando?”, perguntou William.

Margot não disse nada.

“Responda quando falam com você”. Ele lhe deu um empurrão. Mas ela não se mexeu; em vez disso, ela deixou que ele balançasse seu corpo, sem revidar.

Eles se afastavam dela, eles não olhavam para ela. Ela os sentiu se afastando. Isso ocorria porque ela não brincava com eles nos túneis ecoantes da cidade subterrânea. Se eles relavam nela e saiam correndo, ela ficava parada, piscando, e não corria atrás de ninguém. Quando a turma entoava canções sobre alegria e sobre a vida e brincadeiras, seus lábios mal se mexiam. Só quando eles cantavam sobre o sol e o verão é que seus lábios se mexiam, enquanto ela olhava as janelas encharcadas.

E também, é claro, o maior crime de todos é que ela havia chegado ali fazia só cinco anos, tendo vindo do planeta Terra, de modo que ela se lembrava do sol e de como o sol era e de como era o céu quando ela tinha quatro anos de idade, em Ohio. Quanto a eles, eles moraram em Vênus a vida toda e tinham só dois anos na última vez em que o sol aparecera, de modo que há muito se esqueceram da cor e do calor e de como ele realmente é. Mas Margot lembrava.

“É como uma moeda”, ela disse, uma vez, com os olhos fechados.

“Não, não é!”, as crianças gritaram.

“É como fogo”, ela disse, “na fornalha”.

“Você está mentindo, você não se lembra!”, gritaram as crianças.

Mas ela lembrava e ficava quieta, apartada de todos eles, olhando os padrões dos desenhos nas janelas. E uma vez, um mês atrás, ela havia se recusado a tomar banho nos chuveiros da escola, havia apertado as mãos sobre as orelhas e sobre a cabeça, gritando que a água não podia tocar na sua cabeça. Então, depois disso, pouco a pouco ela foi compreendendo em seu íntimo que ela era diferente, que eles sabiam que ela era diferente e que por isso se afastavam.

Havia uma conversa de que os pais dela pretendiam levá-la de volta para a Terra no ano seguinte; parecia vital para ela que eles fizessem isso, muito embora esse retorno fosse significar a perda de milhares de dólares para a família. E então as crianças a odiavam por todos esses motivos, de grandes e pequenas consequências. Eles odiavam seu rosto pálido de neve, seu silêncio paciente, sua magreza e seu provável futuro.

“Cai fora!”. O garoto lhe deu outro empurrão. “O que você está esperando?”

Agora, pela primeira vez, ela se virou e olhou para ele. E aquilo pelo que ela estava esperando transparecia em seus olhos.

“Não adianta ficar aí esperando!”, berrou o garoto, feroz. “Você não vai ver nada!”.

Os lábios dela se mexeram.

“Nada!”, ele gritou. “Era só uma piada, não era?”. Ele voltou-se para as outras crianças. “Não vai acontecer nada hoje. Vai?”.

Todos deram uma piscadela para ele e então, entendendo, gargalharam e balançaram as cabeças. “Não vai acontecer nada, não vai acontecer nada!”.

“Mas...”, Margot sussurrou, seus olhos desamparados. “Mas hoje era o dia, os cientistas previram, eles disseram, eles sabem, o sol...”.

“Tudo uma piada!”, disse o garoto, apertando-a com rudeza. “Ei, pessoal, vamos colocar ela num armário antes que a professora chegue!”.

“Não”, disse Margot, caindo para trás.

Eles a rodearam, levantaram-na do chão e a carregaram à força, com ela protestando, e depois suplicando, e depois chorando, por um túnel, uma sala, dentro de um armário, onde bateram a porta e a trancaram com um cadeado. Eles ficaram olhando para o armário, vendo-o balançar enquanto Margot dava pancadas fortes e jogava o corpo contra a porta. Eles ouviram os choros abafados. Então, sorrindo, viraram as costas e saíram de volta pelo túnel, chegando uma fração de segundo antes da professora.

“Prontas, crianças?”. Ela consultou o relógio.

“Sim!”, disseram todas.

“Todo mundo está aqui?”

“Sim!”

A chuva diminuiu ainda mais.

Eles se amontoaram perto da porta.

A chuva cessou.

Era como se, no meio de um filme com uma avalanche, um tornado, um furação, uma erupção vulcânica, primeiro algo tivesse dado errado com a aparelhagem de som, sufocando e finalmente cortando todos os barulhos, todos os estrondos e reverberações e trovões, e então, na sequência, alguém tivesse retirado o filme do projetor e inserido no lugar um slide com uma bela paisagem tropical sem tremores nem chiados. O mundo tornou-se uma calmaria. O silêncio era tão imenso e inacreditável que você sentia que seus ouvidos haviam sido tampados ou até que você tivesse perdido a audição por completo. As crianças puseram as mãos sobre as orelhas. A porta se abriu e em suas narinas chegou o aroma do mundo silencioso que as aguardava.

O sol apareceu.

Ele tinha a cor de um bronze flamejante e era muito grande. E o céu ao redor tinha uma tonalidade resplandecente de azul que elas nunca tinham visto antes. E a selva brilhava com a luz do sol enquanto as crianças, libertadas do encantamento, avançavam em gritaria para o verão.

“Não corram para muito longe”, avisou a professora. “Vocês só têm uma hora, vocês sabem. Ninguém vai querer ser pego quando o tempo acabar!”

Mas eles já estavam em correria, erguendo os rostos para o céu e sentindo o sol em suas faces como um ferro morno; eles estavam tirando os casacos e deixando o sol queimar seus braços.

“Uau, é melhor do que as lâmpadas de bronzeamento, não é?”

“Muito, muito melhor.”

Eles pararam de correr e contemplaram a grande selva que cobria Vênus, a qual crescia e nunca parava de crescer, tumultuosamente, até mesmo enquanto você olhava para ela. Era um ninho de polvos, uma aglomeração de longos braços de folhas que pareciam carne, balançando, florescendo nessa breve primavera. Era da cor de borracha e de cinzas, essa selva, por causa dos muitos anos de ausência de sol. Era da cor de pedras e queijos brancos e tinta de escrever.

As crianças deitaram, rindo, sobre a colcha da selva, e ouviram-na suspirar e chiar embaixo delas, viva e alegre. Correram entre as árvores, escorregaram e caíram, empurraram umas às outras, brincaram de esconde-esconde e pega-pega. Acima de tudo, elas apertaram os olhos para permanecer olhando em direção ao sol até que lágrimas escorressem por seus rostos; ergueram as mãos na direção daquele amarelo fulgurante e daquela extraordinária imensidão azul, respiraram o ar puro e escutaram o silêncio que os deixou suspensos em um abençoado oceano de ausência de som e movimento. Eles olhavam tudo e saboreavam tudo. E também, eufóricos como animais escapando de cavernas, corriam em roda fazendo a maior algazarra. Eles correram por uma hora inteira e não pararam um segundo sequer.

E então...

No meio da correria uma das meninas deixou escapar uma lamúria.

Todo mundo parou.

A menina, imóvel no campo aberto, levantou o braço e abriu a mão.

“Aah... Olhe, olhe”, ela disse, tremendo.

As crianças vieram devagar para olhar na palma da mão da menina.

Sozinha no centro da palma aberta, grande e arredondada, havia uma gota de chuva.

A menina começou a chorar, olhando para aquilo.

Eles deram uma nova olhadela em direção ao sol.

“Oh-oh.”

Uns poucos pingos gelados caíram em seus narizes, bochechas e bocas. O sol desbotou-se atrás de uma crescente faixa de névoa. Um vento frio soprou ao redor das crianças. Elas se viraram e caminharam de volta para a casa subterrânea, os braços pendentes, os sorrisos se desfazendo.

Uma explosão de trovão assustou a todos e, como folhas segundos antes de um furacão, eles se reviraram e saíram correndo. Raios cruzaram os céus a dez quilômetros de distância, cinco quilômetros de distância, um quilômetro, meio quilômetro. O céu escureceu como se a meia-noite tivesse chegado num piscar de olhos.

Eles pararam na frente da porta de entrada para o subterrâneo e aguardaram até que estivesse chovendo forte. Então fecharam a porta e ouviram o som gigantesco da tempestade caindo em toneladas de avalanches, por todo lugar e para sempre.

“Vão ser mais sete anos?”

“Sim. Sete.”

Então um deles soltou um pequeno gemido.

“Margot!”

“O quê?”

“Ela ainda está no armário onde a gente a trancou!”

“Magot.”

Eles ficaram como se alguém os tivesse arremessado ao chão. Olharam uns para os outros e depois desviaram o olhar. Voltaram os olhos para o mundo em que chovia e chovia e chovia sem trégua. Eles não conseguiam encarar os olhares uns dos outros. Seus rostos estavam pálidos e solenes. Direcionavam a visão às mãos e aos pés, mantendo as cabeças abaixadas.

“Margot.”

Uma das meninas disse: “Então... ?”.

Ninguém se moveu;

“Vamos lá”, sussurrou a menina.

Caminharam vagarosamente pelo corredor sob o som da chuva fria. Entraram pela porta da sala sob o som de tempestades e trovões, relâmpagos em suas faces, azuis e terríveis. Aproximaram-se lentamente da porta do armário e ficaram parados.

Atrás da porta só havia silêncio.

Eles destrancaram o cadeado, com ainda mais lentidão, e deixaram Margot sair.

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