terça-feira, 25 de setembro de 2018

10 LIVROS INCRIVELMENTE BONS, MAS INCRIVELMENTE POUCO COMENTADOS


A lista abaixo é composta por 10 livros que eu considero absurdamente bons, bons muito além da média, mas que, por um motivo ou por outro, não são tão conhecidos quanto deveriam ser. Alguns deles até desfrutam de certa fama, mas quase nunca são lidos. Outros, em flagrante injustiça, são praticamente desconhecidos. Sendo de um caso ou de outro, todas as obras aqui mencionadas me proporcionaram experiências indescritíveis e me marcaram com força tanto como leitor quanto como escritor e, principalmente, ser humano.

LARANJA MECÂNICA, de Anthony Burguess
Ok, ok. Laranja Mecânica não é nem de longe um livro pouco conhecido. Muito pelo contrário, você pode escolher ao acaso qualquer pessoa na rua e a chance de que ela afirme conhecer o nome "Laranja Mecânica" com certeza é maior do que 90%. A porcentagem cai um pouco se você quiser saber se a pessoa assistiu ao filme do Stanley Kubrick, mas despenca de verdade se você estiver atrás de alguém que tenha de fato abraçado a árvore da qual o filme é fruto.

Sem entrar em análises insossas do tipo "o livro é sempre melhor do que o filme", ainda assim somos obrigados a observar que Laranja Mecênica atingiu um feito notável e possivelmente único na história das adaptações cinematográficas: trata-se de uma inegável obra-prima da literatura, um desses livros que fogem de lugares-comuns tanto na forma quanto no conteúdo, ousando na utilização de neologismos e recursos linguísticos inovadores, e o filme nela baseado conseguiu ainda assim alcançar a mesma inventividade e eficiência no contexto da linguagem cinematográfica. O próprio Anthony Burguess, em seu notável ensaio "Geleia Mecânica", diz que a versão cinematográfica da história é "um típico filme de Kubrick – tecnicamente brilhante, profundo, relevante, poético [e] de abrir a mente".

Quanto ao livro em si, seu conteúdo não é ofuscado em nada, mas antes realçado, pelo brilho da versão de Kubrick. Experimentalismos linguísticos apurados e bem-sucedidos, metáforas formidavelmente eficazes, humor e violência convivendo numa ambivalência fluida tecida com mão de mestre, um protagonista-narrador extraordinariamente cativante e uma trama que propicia infindas reflexões psicológicas, sociais e culturais garantem o lugar de Laranja Mecânica entre os melhores e mais corajosos romances da literatura moderna.

O ROSTO DE UM OUTRO, de Kobo Abe
Maravilha subestimada da literatura mundial! Aqui está um livro realmente estupendo sobre o qual eu nunca vi pessoas comentando (parte disso se deve à minha reclusão um pouco mais do que moderada de clubes literários, mas mesmo quando eu procurei muito, só encontrei uma única pessoa que já havia lido o livro – é importante dizer que ela também o amou). A sinopse da edição brasileira (um primor de projeto gráfico da extinta Cosac Naify) já é suficiente para dar uma boa ideia sobre os méritos de O Rosto de Um Outro: "escrito no Japão do pós-guerra por um dos escritores mais relevantes do século XX, este livro é uma história de terror sobre a identidade. Depois de ter o rosto desfigurado num acidente de laboratório, seu protagonista tem a vida inteira interrompida. Em crise, lança-se à busca obcecada de um novo rosto e tenta responder a esta pergunta crucial: qual é o vínculo entre fisionomia e identidade? Experimentalista, transgressor, Kobo Abe também explorou a fotografia e o cinema".

PLANOLÂNDIA, de Edwin A. Abbott
Outro livro totalmente fora da caixinha! Ficção especulativa de primeiríssima qualidade! Temos, aqui, um livro incomparável que trata sobre a ideia de dimensão (isso mesmo, um romance sobre a noção de dimensões espaciais: aquelas que sentimos na vida prática como sendo apenas três, mas que a física moderna supõe serem 11). Eis a sinopse da esgotada edição brasileira publicada pela Conrad Livros: "a fértil imaginação de Edwin A. Abbott, aliada a uma exótica mistura de matemática, física, ficção, crítica social e certa dose de sarcasmo, resultou em uma aventura que mesmo depois de um século de existência constitui leitura deliciosa. Em Planolândia, figuras geométricas dotadas de características bastante humanas convivem em um universo bidimensional onde a ordem é mantida a ferro e fogo pelas autoridades poligonais e circulares. No entanto, todas as convicções de um incauto quadrado planolandês ameaçam ruir quando um visitante esférico irrompe o plano para relevar a transtornante existência de uma terceira dimensão...".

Parábola impressionante e divertidíssima sobre o despertar da consciência, algo como uma versão geométrica do mito da caverna de Platão, Planolância – um romance de muitas dimensões é daquele tipo de livro de cuja leitura eu não consigo imaginar uma única pessoa que não sairia melhor, mais realizada e com uma expansão benéfica em sua visão de mundo.

Obs. 1: não se deixe intimidar pela abordagem geométrica. O livro é delicioso e de fácil leitura, sem complexidades matemáticas que exijam conhecimentos especializados ou termos técnicos excessivamente abstratos.

Obs. 2: o protagonista é mesmo um quadrado. 

DIÁRIO DO FAROL, de João Ubaldo Ribeiro
Opa, opa, opa. Agora vamos tratar de um livro sobre o qual não dá para fazer brincadeiras na hora de falar. Livro denso, pesado e sério. Realista e perturbador. Diário do Farol mexeu de verdade com os meus nervos, e depois de virar a última página eu tive que sair de casa e dar um passeio à toa para respirar um pouco de ar fresco.

Sinopse: "Diário do Farol é o relato autoral de um clérigo amoral e inescrupuloso que, no outono da sua existência, resolve inventariar seu rosário de maldades, perpetradas com requintes extremos desde a infância no seminário – de início, sob o pretexto de vingar os maus-tratos do pai; posteriormente, ainda mais sofisticadas, devido ao desprezo de uma mulher". Nessa obra derradeira de um dos maiores romancistas do nosso país, encontramos aquele que eu considero o retrato mais realista de um psicopata nas artes em geral (literatura, cinema, teatro, etc.). No livro de João Ubaldo Ribeiro não vemos um psicopata carismático ou excessivamente louco a lá Stephen King nem nada tão idealizado com base em teses acadêmicas e pintado com as tintas do imaginário popular como um Hannibal Lecter, por exemplo, mas, sim, um ser humano complexo e realista que não se importa com noções de bem e mal, alguém que, até certo ponto, não sente remorsos ou arrependimentos, alguém de inteligência acima da média mas sem quaisquer freios morais, alguém internamente machucado que se utiliza das hipocrisias sociais para satisfazer os próprios desejos egoístas e que, insulado de contato humano real, vive de máscaras e tramoias vingativas engendradas por um ódio doentiamente paciente.

Além da profunda sondagem psicológica que não deixa nada a dever a um Dostoiévsky e que supera a habilidade narrativa de Poe (de quem o autor teve clara inspiração), João Ubaldo Ribeiro compôs uma história robusta, daquelas que não nos deixam largar o livro um minuto sequer, que investiga parte da oculta podridão endógena da sociedade brasileira, situando a trama numa época bastante propícia para esse tipo de reflexões: a ditadura militar de 1964. É, enfim, um livro valiosíssimo para repensarmos nossa sociedade nesses tempos tão incertos e de ausência de compaixão, com perigos de extremismos cegos à realidade, em que estamos vivendo.

FOGO FRIO, de Dean Koontz
Suspense sobrenatural e terror psicológico com a marca inconfundível do mestre Dean Koontz, meu preferido entre os autores norte-americanos de best-sellers (para não dizer "escritores populares", que é uma expressão que eu detesto). Fogo Frio traz todas as características que amamos em Dean Koontz: do protagonista hiper-carismático aos surpreendentes plot twists, da ação frenética ao permanente clima de mistério arrebatador, das figuras de linguagem inusitadas e engraçadas àquela suprema capacidade de fazer com que as páginas virem-se sozinhas e nos impeçam de dormir à noite, forçando-nos a manter o abajur ligado a madrugada inteira, na semi-penumbra povoada de irresistível imaginação fantástica, enquanto dizemos para nós mesmos que "é só mais um capítulo, só mais um capítulo...".

Em meio ao terror incrivelmente imaginativo, Dean Koontz, o herói literário que admiro com a pureza de uma criança, instila uma atmosfera ao mesmo tempo sinistra e encantadora que comprova que a vida é muito mais rica, bela, surpreendente e valiosa do que nos faz crer a banalidade cotidiana da existência quando não nos permitimos usar a imaginação e a apreciar o pôr-do-sol, as brisas noturnas, as estrelas no campo e todos os outros inenarráveis mistérios que nos cercam a todo instante.

Curiosidade: só vim a conhecer Dean Koontz meses depois de ter escrito todas as histórias de A Caixa de Natasha, mas já no meu livro de estreia eu percebo muita influência indiretamente recebida do autor. Desde que li Fogo Frio, não nego nem um pouco que anseio conseguir escrever um livro pelo menos metade tão bom quanto. 

NARRATIVAS DO ESPÓLIO, de Franz Kafka
Franz Kafka é um dos autores mais famosos do mundo (apesar de não ter conhecido essa fama em vida, como bem sabemos). Sua importância é tão grande que hoje já podemos usar tranquilamente o adjetivo "kafkiano" sem medo de não sermos compreendidos pela pessoa com quem estamos falando. As marcas de Kafka no imaginário coletivo talvez sejam as mais notáveis dentre aquelas que recebemos de um único autor isolado (independente de "escolas literárias") do século XX. Tanto assim que ninguém precisa sequer ter lido O Processo ou A Metamorfose para estar intuitivamente familiarizado com o personagem oprimido em um universo de pesadelo burocrático que o subjuga como se fosse um impiedoso pai dominador ou para conhecer a mais famosa introdução de um conto de literatura fantástica de todos os tempos: "Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa viu-se metamorfoseado em um gigantesco inseto". Basta respirar o ar da cultura ocidental contemporânea que Kafka vai estar lá em algum lugar, é inevitável.

Por que diachos, então, Kafka está nessa lista de livros pouco comentados? Ora, é simples: porque, apesar de todo mundo falar a todo momento sobre o livro e o conto supramencionados, além de, de vez em quando, da noveleta Na Colônia Penal e da correspondência-nunca-enviada que posteriormente foi intitulada de Carta ao Pai, poucas vezes em ambientes não-acadêmicos alguém se lembra das Narrativas do Espólio. No entanto, nessas Narrativas (coletânea de textos curtos que Kafka nunca viu publicados e que foram reunidos por Max Brod, amigo e testamenteiro do autor, a quem este havia pedido para que queimasse toda sua produção literária) estão algumas das peças mais paradigmáticas do estilo do problemático artista tcheco. Em particular, o que já é mais do que suficiente para que se tenha esse livro na estante, é nele que se encontra a Pequena Fábula, história de um único parágrafo curto que condensa praticamente todas as características de Kafka e que é inegavelmente um dos melhores micro-contos da literatura de ontem, de hoje e (por certo) de amanhã.

Obs.: enquanto eu escrevia essa matéria eu podia jurar que era em meio às Narrativas do Espólio que se encontrava A Preocupação de um Pai de Família, conto que marca a presença da intrigante e nada familiar criatura de nome Odradek e que é um dos meus favoritos do Kafka. Consultando o livro, contudo, constatei que eu estava enganado. Descobri depois que o conto está em Um Médico Rural (Companhia das Letras, 1999).

OS RATOS, de Dyonélio Machado
Já que falamos de Kafka, por que não nos recordar da obra de Dyonélio Machado, aquele que, com certa propriedade, é chamado de "o Kafka brasileiro"? Os Ratos, sua obra-prima, é uma pérola esquecida da literatura brasileira, um clássico "menor" que, se justiça lhe fosse feita, deveria estar lado a lado com Machado de Assis, Lima Barreto, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo e companhia nos livros-textos escolares.

Com tons genuinamente kafkianos, Os Ratos narra um dia na vida do funcionário público Naziazeno Barbosa, um cidadão comum que acorda com um sério problema: o leiteiro ameaça cortar-lhe o fornecimento de leite caso ele não pague na manhã seguinte os 53 mil réis que lhe deve. Durante todo o dia, Naziazeno, um dos mais marcantes representantes da galeria de personagens desvalidos que povoam a literatura brasileira modernista, perambula pela cidade de Porto Alegre do começo do século XX em busca de algum dinheiro para saldar a dívida. A trama se passa em aproximadamente vinte e quatro horas e descreve em detalhes as perspectivas, angústias, esperanças e desilusões do personagem durante este tempo.

Curiosidade: o prolífico ficcionista Rubens Francisco Lucchetti, um verdadeiro homem das letras injustiçado devido a preconceitos por causa dos gêneros nos quais escreve (terror, horror e literatura pulp em geral), a quem eu entrevistei aqui no blog alguns anos atrás, já me contou que admira demais o magnum opus de Dyonélio Machado e que também não entende por que Os Ratos não é mais conhecido, estudado e lido. 

MERIDIANO DE SANGUE, de Cormac McCarthy
Esse faroeste violentíssimo e brilhantemente escrito atinge algo de supremo a que pouquíssimos romances já chegaram perto. Harold Bloom e David Foster Wallace comparam-no a Moby Dick, de Melville, com Wallace tendo inclusive declarado que "não sabe nem por onde começar [para elogiar o livro], tudo parece perfeito nele".

Com vocabulário rico além de qualquer expectativa, belamente trabalhado como se cada parágrafo se tratasse da mais elevada expressão poética, Meridiano de Sangue – ou O rubor crepuscular no Oeste descreve o mundo brutal na fronteira entre o Texas e o México na metade do século XIX. Ao se basear inicialmente em fatos reais – uma gangue de pistoleiros que cruza uma terra de ninguém com a missão oficial de escalpelar índios –, McCarthy recria um Oeste americano violento e imprevisível em que o real e o imaginário se fundem em uma história com dimensões apocalípticas.

Obras-primas não são exatamente novidades no currículo do autor de A Estrada e Onde os Velhos não têm Vez (romance que deu origem ao filme igualmente maravilhoso, e talvez até melhor do que o livro, Onde os Fracos não têm Vez), mas Meridiano de Sangue é algo a ser aplaudido de pé.

SOLARIS, de Stanislaw Lem
Fui atrás do livro Solaris instigado pelo filme homônimo do Andrei Tarkovsky, em absoluto um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. "De que tipo de livro o Tarkovsky pode ter tirado a ideia de fazer um filme assim? O filme é essencialmente imagético, alusivo, abstrato, atmosférico e nada 'literário', por assim dizer. Provavelmente deve ser um livro comum de ficção científica, uma dessas obras banais que grandes cineastas utilizam apenas como ponto de partida material para pôr em movimento suas genialidades de criação audiovisual" – era isso que eu pensava em minha ingenuidade até pôr os olhos nos primeiros capítulos da obra de Stanislaw Lem. Para dizer o mínimo, em Solaris encontrei um verdadeiro portento da inteligência e da imaginação humanas. O livro de fato não tem muito a ver com o filme (a abordagem do livro é muito mais científico-especulativa, enquanto o filme é algo entre o onírico, o poético e, coisa rara!, o filosófico não-maçante), mas, a seu modo, as páginas também atingem níveis elevadíssimos de criatividade e inteligência. É ler para saber do que eu estou falando!

O ESTRANHO MISTERIOSO, de Mark Twain
A-há! O que dizer desse peculiar O Estranho Misterioso, um ponto aparentemente tão fora da curva no conjunto da obra de Mark Twain? Como todos sabem, Mark Twain é famoso por seus livros ágeis e humorísticos, muitos deles infanto-juvenis, como As Aventuras de Tom Sawyer e As Aventuras de Huckelberry Finn, a maioria dos quais se passa no Mississippi e são alegres e cheios de peripécias inocentes. O Estranho Misterioso, tomando um rumo bem diferente, se passa na Idade Média e é bastante sombrio, com uma visão algo que niilista e talvez até pessimista acerca da existência humana.

Sinopse: o pacífico vilarejo de Eseldorf cochilava no interior da Áustria em plena a Idade Média. E assim seria para sempre, se não fosse a chegada de um ser enigmático e poderoso que causa sérias mudanças na vida da comunidade. Esse "Estranho", de comportamento tão imprevisível, diz apenas para as crianças do vilarejo que ele é um anjo, e, para provar que é quem diz ser, realiza magias impossíveis, das quais só elas podem saber que ele é o responsável, como fazer surgir frutas nas mãos das pessoas e dar vida a bonecos feitos de barro. Quando as crianças lhe perguntam seu nome, ele responde, sereno, que se chama "Satan"...

O livro é realmente singular e inesquecível. Por curiosidade, vale mencionar que o filme As Aventuras de Mark Twain, uma animação em stop-motion de 1985 que faz uma maluquice bem divertida em misturar fatos reais da vida do autor e algumas de suas frases célebres com diversas de suas histórias, incluiu uma cena um tanto esquisita e até assustadora fazendo referência a O Estranho Misterioso. Dizem que a cena foi censurada quando o filme foi exibido na tevê aberta de alguns países, pois era considerada sombria demais para as crianças. Não sei se a informação é verdadeira, mas vale a pena conferir esse trecho do filme:
***
Espero que vocês tenham aproveitado a lista!

Não deixem de comentar quais livros dela vocês já leram, quais querem ler e quais vocês ainda não conheciam! Não deixem, também, de comentar indicando outros títulos que vocês acham que são subvalorizados e subestimados, ou mesmo livros sobre os quais as pessoas deveriam comentar mais do que comentam (ou ler mais do que dizem que leem!).

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