sexta-feira, 14 de setembro de 2018

CONTO: AXIOMÁTICO, de Greg Egan


Embora pouco conhecido do grande público no mundo em geral e praticamente ignorado em nosso país, Greg Egan é um dos mais importantes nomes da ficção científica escrita nos dias de hoje. Dono de uma mente brilhante, rigorosa e profundamente inventiva  tanto que o jornal Times qualificou-o como "um dos grandes homens de ideias do gênero da ficção científica" – Egan é, também, reservado a ponto de quase não conceder entrevistas, de não fazer aparições públicas e de se gabar em seu site pessoal do fato de que não existe uma única foto sua em local algum da internet.

O que se sabe de Greg Egan é que ele é programador de computador em Sidney, na Austrália, e que já publicou dezenas de livros, entre romances e coletâneas de contos, abrangendo, com profundidade admirável mesmo no contexto da chamada "hard science fiction", temas espinhosos como viagem no tempo, realidades múltiplas, livre-arbítrio, consciência humana, manipulação genética, inteligência artificial, fenômenos psicolinguísticos e complexas teorias matemáticas (apenas para mencionar alguns dos assuntos de sua predileção).

Em Axiomático, um de seus contos mais interessantes e acessíveis, Greg Egan nos oferece uma história repleta de insights sobre um futuro hipotético no qual são comercializados implantes capazes de alterar quase que instantaneamente o funcionamento de áreas específicas do cérebro, possibilitando que o consumidor escolha a seu bel-prazer o que vai ser alterado em sua forma de enxergar, compreender, interpretar e lidar com o mundo a seu redor. Trata-se, além de uma história de suspense psicológico de primeira qualidade, de uma ficção científica capaz de, de fato, abrir a mente do leitor e fazê-lo vislumbrar por novas perspectivas os limites da moralidade e da capacidade de auto-determinação de cada indivíduo.

"Greg Egan é o escritor de sci-fi mais importante do século XXI... Leia Greg Egan hoje, porque é o que todo mundo vai estar lendo amanhã" – Stephen Baxter (autor de ficção científica, engenheiro e matemático).

***
AXIOMÁTICO – Greg Egan
Tradução de Melvin Menoviks

“Como se seu cérebro fosse congelado por nitrogênio líquido e então esmigalhado em milhares de estilhaços”!

Eu abri caminho me espremendo por entre os adolescentes ociosos na parte de fora da entrada da Loja de Implantes, sem dúvida esperando fervorosamente que a imagem holográfica de uma equipe de notícias aparecesse e perguntasse por que eles não estavam na escola. Eles fizeram mímicas de que estavam vomitando enquanto eu passava, como se o fato de eu não estar na puberdade e não me vestir como um membro da Binary Search fosse tão repugnante que os deixasse fisicamente enjoados.

Bem, talvez deixasse mesmo.

Dentro, o lugar estava quase deserto. O interior se assemelhava ao de uma loja de vídeo ROM; as prateleiras de exibição eram praticamente idênticas, e muitos dos logotipos dos distribuidores eram os mesmos. Cada prateleira estava classificada: PSICODELIA. MEDITAÇÃO E CURA. MOTIVAÇÃO E SUCESSO. LINGUAGEM E HABILIDADES TÉCNICAS. Cada implante, apesar de ter menos de meio milímetro de diâmetro, vinha em uma embalagem do tamanho de um livro do estilo antigo, ostentando ilustrações berrantes e algumas linhas com as hipérboles rançosas de um thesaurus de marketing ou de uma propaganda de seguros feita por alguma celebridade. “Torne-se Deus! Torne-se o Universo!”, “O Insight definitivo! A sabedoria definitiva! A viagem definitiva!”, e até o sempre presente “esse implante mudou a minha vida!”.

Peguei o cartão com Você é demais! – o embrulho de proteção transparente refletindo marcas suadas de impressões digitais – e pensei, meio entorpecido: se eu comprar essa coisa e usar, eu vou acreditar de verdade em tudo isso. Nenhuma quantidade de evidência em contrário poderá ser fisicamente capaz de me fazer mudar de ideia. Coloquei o cartão de volta na estante, perto de Ame a Si Mesmo um Bilhão De Vezes e Força de Vontade Instantânea, Riqueza Instantânea.

Eu sabia exatamente do que eu estava atrás, e sabia também que o que eu procurava não estaria no mostruário de exibição, mas procurei um pouco mais, em parte por genuína curiosidade, em parte apenas para dar algum tempo para mim mesmo. Tempo para pensar mais uma vez nas consequências. Tempo para voltar ao meu juízo e abandonar o que eu estava fazendo.

A capa de Sinestesia mostrava um homem em êxtase com um arco-íris atingindo sua língua e partituras musicais penetrando-lhe os olhos. Ao lado dela, o Mind-Fuck Alienígena alardeava “um estado mental tão bizarro que, mesmo que você o experimente, você não vai saber como é!”. A tecnologia de implante foi desenvolvida originalmente para proporcionar habilidades linguísticas instantâneas a homens de negócios e a turistas, mas, depois das vendas decepcionantes e da aquisição por um conglomerado do entretenimento, os primeiros implantes apareceram no mercado para as grandes massas: uma mistura entre video-games e drogas alucinógenas. Com o passar dos anos, o nível de confusão e disfunção na oferta foi se tornando cada vez maior, mas há um limite que não pode ser ultrapassado; a partir de certo ponto, remexer nas conexões neurais faz com que não fique ninguém para ser entretido pela estranheza, e o usuário, uma vez de volta à normalidade, não se lembra de quase nada.

Os primeiros implantes da nova geração – chamados de “axiomáticos” – eram todos de natureza sexual; parece que essa era o jeito tecnicamente mais simples de se começar. Caminhei até a seção Erótica para ver o que estava disponível – ou, pelo menos, o que podia ser legalmente exibido. Homossexualidade, heterossexualidade, autoerotismo. Uma coleção de fetiches inofensivos. Erotização de várias partes inusitadas do corpo. Por que, eu perguntei para mim mesmo, uma pessoa escolheria ter seu cérebro reformulado no sentido de fazê-la almejar uma prática sexual que, de outra forma, ela consideraria repugnante, ou ridícula, ou, que seja, apenas entediante? Para consentir com as exigências de um parceiro? Talvez, embora tal submissão extrema fosse difícil de imaginar e estivesse difundida em quantidade insuficiente para explicar a magnitude do mercado. Para permitir que partes de suas próprias sexualidades que, sem intervenção, teriam sido meramente incômodas triunfassem sobre suas inibições, suas ambivalências, suas repulsas? Todo mundo tem desejos conflitantes, e as pessoas podem ficar cansadas de, ao mesmo tempo, querer e não querer a exata mesma coisa. Isso eu entendia com perfeição.

A prateleira seguinte continha um compilado de religiões, tudo de Amish a Zen. (Obter a desaprovação dos Amish quanto a esse tipo de tecnologia parecia não constituir nenhum problema; praticamente todos os implantes religiosos levavam o usuário a adotar contradições bem mais estranhas). Havia até mesmo um implante para o Humanismo Secular (“você VAI adotar essas verdades como sendo auto-evidentes!”). Não havia Agnosticismo Vacilante, contudo; parece que não existia mercado consumidor para dúvidas.

Eu me detive por um minuto ou dois. Por meros cinquenta dólares eu poderia trazer de volta o catolicismo da minha infância, ainda que a Igreja não aprovasse o método (ao menos não oficialmente; teria sido interessante saber quem, exatamente, estava subsidiando o produto). Ao fim, no entanto, eu tenho que admitir que eu não estava me sentindo tentado de verdade. Talvez a escolha pudesse resolver o meu problema, mas não resolveria do jeito que eu queria que ele fosse resolvido – e, no fim das contas, fazer do meu jeito era o motivo que me trazia aqui. Usar um implante não me privaria do meu livre-arbítrio; ao contrário, iria me ajudar a firmá-lo.

Finalmente, eu tomei coragem e me aproximei do balcão de vendas.

“Como posso ajudá-lo, senhor?”, o jovem sorriu para mim radiando sinceridade, como se ele realmente adorasse seu trabalho. Quero dizer, como se ele adorasse mesmo.

“Eu vim para retirar uma encomenda especial.”

“Seu nome, por favor.”

“Carver. Mark.”

Ele se abaixou no balcão e subiu com um pacote, misericordiosamente já envolto em papel pardo. Paguei em dinheiro. Eu já havia trazido o valor exato: $399,95. Estava tudo terminado em vinte segundos.

Saí da loja, doente de alívio, triunfante, exausto. Pelo menos eu finalmente havia comprado a porra do negócio; estava nas minhas mãos agora, ninguém mais estava envolvido, e tudo o que eu tinha de fazer era decidir se iria ou não usar aquilo.

Depois de caminhar alguns quarteirões em direção à estação de trem, joguei o pacote em uma lixeira, mas voltei quase que de imediato para recuperá-lo. Cruzei com um par de policiais armados e senti seus olhos me averiguando por detrás dos óculos espelhados, mas o que eu estava carregando era perfeitamente legal. Afinal, como o governo poderia banir um dispositivo que, naqueles que livremente escolheram usá-lo, não fazia mais do que produzir um conjunto particular de crenças – sem, com isso, mandar prender também todos aqueles que compartilhavam naturalmente dessas crenças? Isso poderia ser feito com muita facilidade, na verdade, já que a lei não precisa ser necessariamente consistente, mas os fabricantes dos implantes foram bem-sucedidos em convencer o público de que restringir seus produtos seria uma forma de pavimentar o caminho para a Polícia do Pensamento.

Quando cheguei em casa, eu estava tremendo incontrolavelmente. Coloquei o envelope sobre a mesa da cozinha e comecei a andar de um lado para o outro para pôr a cabeça no lugar.

Aquilo não era por Amy. Eu tenho que admitir isso. Só porque eu ainda a amava, e ainda me lamentava em luto por ela, não significa que eu estava fazendo aquilo por ela. Eu não iria manchar a memória dela com uma mentira.

Na verdade, eu estava fazendo aquilo para me ver livre dela. Após cinco anos, eu queria que meu amor sem sentido, minha mágoa inútil, parasse de comandar a minha vida. Ninguém poderia me culpar por isso.

Ela morrera vitimada durante um roubo armado em um banco. As câmeras de segurança foram desativadas, e todas as pessoas, com exceção dos bandidos, passaram a maior parte do tempo deitadas de bruços, com os rostos colados no chão, então eu nunca descobri a história toda. Ela deve ter se mexido, ter ficado inquieta, olhado para cima, ela deve ter feito alguma coisa; mesmo nos ápices do meu ódio, eu não conseguia acreditar que ela havia sido assassinada por um simples capricho, por razão nenhuma.

Eu sabia quem havia apertado o gatilho, contudo. Isso não havia surgido no julgamento; um funcionário no Departamento de Polícia me vendera a informação. O nome do assassino era Patrick Anderson, e, por ter se tornado testemunha de acusação no processo, ele havia posto seus parceiros na prisão perpétua e reduzido sua própria pena em sete anos.

Eu busquei a mídia. Uma personalidade detestável do show-business pegou minha história e tagarelou sobre ela por uma semana, diluindo os fatos com retórica de autopromoção, depois se cansou e partiu para outra.

Cinco anos depois, Anderson saiu em liberdade condicional por nove meses.

Ok. E daí? Isso acontece o tempo todo. Se alguém viesse até a mim com uma história dessas, eu teria sido compreensivo, mas firme. “Esqueça-a, ela está morta. Esqueça-o, ele é lixo. Siga em frente com a sua vida”.

Eu não a esqueci, nem esqueci o assassino dela. Eu a amava, o que quer que isso signifique, e, enquanto a minha parte racional já havia engolido o fato de que ela estava morta, o resto continuava se revirando como uma serpente decapitada. Outra pessoa no mesmo estado poderia ter transformado a casa em um santuário, cobrindo cada parede com fotografias e lembranças, poderia ter levado flores novas ao túmulo dela todos os dias e passado todas as noites se embriagando e assistindo a velhos vídeos caseiros. Eu não fiz nada disso, eu não podia. Teria sido grotesco e totalmente falso; sentimentalismo nos deixava a ambos violentamente enojados. Eu guardei uma única foto. Nós não havíamos gravado vídeos caseiros. Eu visitava o túmulo dela uma vez por ano.

Apesar dessa contenção exterior, dentro da minha cabeça minha obsessão com a morte de Amy simplesmente continuava crescendo. Eu não queria isso, eu não estava escolhendo, eu não alimentava ou encorajava essa obsessão de maneira alguma. Eu me enterrava no trabalho; no meu tempo livre eu lia ou ia ao cinema, sozinho. Eu pensei em procurar uma pessoa nova, mas nunca cheguei a fazer nada quanto a isso, sempre prorrogando para aquela data indefinida no futuro incerto quando eu voltaria a ser humano de novo.

Todas as noites, os detalhes do incidente circulavam no meu cérebro. Eu pensava em mil coisas que eu “poderia ter feito” para evitar a morte dela, desde não ter me casado com ela no começo de tudo (nós nos mudamos para Sydney por causa do meu trabalho) até magicamente ter aparecido no banco quando o assassino apontava a arma, arremessado-o ao chão e o espancado sem piedade, ou pior. Eu sabia que essas fantasias eram fúteis e autoindulgentes, mas esse conhecimento não servia de cura. Se eu tomava pílulas para dormir, a coisa toda simplesmente se deslocava para as horas diurnas e eu ficava literalmente incapacitado de trabalhar (os computadores que utilizamos estão ligeiramente menos espantosos a cada ano, mas controladores de tráfego aéreo não podem devanear em serviço).

Eu precisava fazer alguma coisa.

Vingança? Vingança era para os moralmente retardados. Quanto a mim, eu já assinei petições às Nações Unidas clamando pela abolição mundial e incondicional da pena de morte. Era o que eu defendia na época e é o que eu continuo defendendo hoje. Tirar uma vida humana é errado; eu acreditava apaixonadamente nisso desde a infância. Talvez tenha começado como um dogma religioso, mas quando eu cresci e me desfiz de toda a conversa fiada ridícula das religiões, a inviolabilidade da vida foi uma das poucas crenças que eu considerei dignas de serem mantidas. À parte das minhas razões pragmáticas, a consciência humana sempre me pareceu ser a coisa mais deslumbrante, miraculosa e sagrada do universo. Culpe minha formação educacional, culpe meus genes; eu não podia desvalorizá-la mais do que acreditar que um mais um é igual a zero.

Diga a algumas pessoas que você é um pacifista e em dez segundos elas vão inventar uma situação na qual milhões de pessoas vão morrer em indizível agonia e todos os seus entes queridos vão ser torturados e estuprados se você não estourar os miolos de alguém (sempre há uma razão inventada quanto ao porquê de você não poder apenas ferir o lunático homicida todo-poderoso).

Anderson, contudo, claramente não era um lunático homicida todo-poderoso. Eu não tinha ideia se ele poderia ou não vir a matar de novo. Quanto à sua capacidade de recuperação social, sua infância de abusos ou o alter ego caridoso e compassivo que poderia estar escondido atrás da fachada de seu exterior brutal, eu realmente não dava a mínima, mas, de qualquer forma, eu estava convencido de que seria errado matá-lo.

Primeiro eu comprei a arma. Foi fácil e estritamente legal; talvez os computadores simplesmente tenham falhado em correlacionar meu pedido de permissão com a soltura do assassino da minha esposa, ou talvez a ligação tenha sido detectada, mas considerada irrelevante.

Eu me juntei a um clube de “esportes” cheio de gente que passava três horas por semana sem fazer nada que não fosse atirar em alvos móveis em formato de seres humanos. Uma atividade recreativa, tão inofensiva quanto a esgrima; eu pratiquei dizer isso com uma expressão séria no rosto.

Comprar munição anônima de um colega membro do clube, isso sim foi ilegal; balas que evaporam com o impacto, não deixando nenhuma evidência balística que as associe com uma arma específica. Eu chequei os registros dos tribunais; a sentença mais alta por possuir esse tipo de munição era uma multa de quinhentos dólares. O silenciador também era ilegal; as penalidades para a posse eram similares.

Toda noite eu pensava no assunto de cabo a rabo. E toda noite eu chegava à mesma conclusão: a despeito das minhas elaboradas preparações, eu não ia matar ninguém. Parte de mim queria, parte de mim não queria, mas eu sabia perfeitamente bem qual das duas era a mais forte. Eu passaria o resto da minha vida sonhando em fazer isso, à salvo na ciência de que nenhuma quantidade de ódio ou mágoa ou desespero seria algum dia suficiente para me fazer agir contra a minha natureza.


Eu abri o pacote. Eu estava esperando uma capa espalhafatosa – um homem musculoso de expressão sarcástica segurando uma submetralhadora – mas a embalagem não tinha adornos, cinza claro sem qualquer marca a não ser o código do produto e o nome do distribuidor: Pomar Mecânico.

Eu havia encomendado o produto através de um catálogo on-line acessado via um terminal público, e eu especifiquei a retirada por “Mark Carver” em uma filial da Loja de Implantes no distrito de Chatswood, bem longe da minha casa. Tudo isso era paranoia sem sentido, já que o implante não era proibido por lei – mas mesmo assim tudo isso era perfeitamente razoável, já que eu me senti muito mais nervoso e culpado ao comprar o implante do que eu havia me sentido comprando a arma e a munição.

A descrição no catálogo começava com a declaração “A vida não vale um centavo!” e depois continuava por várias linhas no mesmo viés: Pessoas são só carne. Elas não são nada, são inúteis, sem valor. As palavras exatas não têm importância; elas não eram parte do implante em si. Não seria o caso de uma voz na minha cabeça recitando um encantamento mal escrito que eu poderia escolher ridicularizar ou ignorar; também não seria uma espécie de decreto legislativo mental do qual eu pudesse me evadir por meio de subterfúgios semânticos. Implantes axiomáticos derivavam de análises de estruturas neurais reais contidas nos cérebros das pessoas de verdade, eles não eram baseados na expressão dos axiomas da linguagem. Não seria a letra da lei a prevalecer, mas o seu espírito.

Eu abri a caixa. Havia um folheto de instrução em dezessete línguas diferentes. Um programador. Um aplicador. Um par de pinças. Selado em plástico bolha com a inscrição “esterilizado se lacrado”, o implante em si. Parecia um pequeno pedaço de grão de areia.

Eu nunca havia usado um implante antes, mas já tinha visto em holovisão umas mil vezes como se usava. Você tinha que colocar o objeto no programador, “acordá-lo” e dizer por quanto tempo você queria que ele ficasse ativo. O aplicador era estritamente para os principiantes; os já calejados da prática punham o implante na ponta do dedinho e delicadamente o levavam para a narina de sua escolha.

O implante se infiltrava no cérebro, enviava um enxame de nanomáquinas para explorar e estabelecer ligações com os sistemas neurais relevantes e então entrava em modo ativo pelo tempo predeterminado – qualquer período entre uma hora e até o fim dos tempos – fazendo o que tinha de fazer. Possibilitar orgasmos múltiplos no joelho esquerdo. Fazer a cor azul ter o sabor da memória há tanto tempo esquecida do leite materno. Ou então conectar a premissa: Eu vou obter sucesso. Eu sou feliz no meu trabalho. Existe vida após a morte. Ninguém morreu em Belsen. Quatro pernas é bom, duas pernas é ruim...

Eu coloquei tudo de volta na caixa, guardei em uma gaveta, tomeis três pílulas para dormir e fui para a cama.

Talvez tenha sido uma questão de preguiça. Eu sempre fui inclinado a tomar opções que me poupassem de encarar o mesmíssimo conjunto de escolhas no futuro; me parece tão ineficiente ter de passar pelas mesmas agonias de consciência mais de uma vez. Não usar o implante significaria ter de reafirmar essa decisão dia após dia pelo resto da minha vida.

Ou talvez eu nunca tenha acreditado de fato que aquele brinquedo absurdo iria funcionar. Talvez eu esperasse provar que minhas convicções – ao contrário das convicções das outras pessoas – estavam esculpidas em uma placa metafísica pairando em uma dimensão espiritual que não pudesse ser alcançada por máquina nenhuma.

Os talvez eu só quisesse um álibi moral – uma forma de matar Anderson e continuar acreditando que isso seria algo que o eu de verdade nunca teria feito.

Ao menos eu estou seguro de uma coisa. Eu não fiz isso por Amy.


Acordei próximo ao amanhecer, no outro dia, apesar de que eu não precisava me levantar para nada, já que estava de férias por um mês. Eu me vesti, tomei o café da manhã e então desembrulhei o implante de novo e li com cuidado as instruções.

Sem nenhum senso de ocasião especial, abri o plástico bolha e, com as pinças, despejei a partícula na cavidade do programador.

O programador disse: “Você fala em inglês?”. A voz me fez lembrar da de uma das torres de controle do trabalho; profunda, mas, de algum modo, sem sexo definido, profissional sem ser grosseiramente robótica – e, ainda assim, inequivocamente inumana.

“Sim.”

“Você quer programar o implante?”

“Sim.”

“Por favor, especifique o período de atividade.”

“Três dias.” Três dias seriam suficientes, com certeza; se não fossem, eu daria tudo por encerrado.

“O implante deverá permanecer em atividade por três dias após a inserção. Está correto?”

“Sim.”

“O implante está pronto para uso. O horário é 7:43 AM. Por favor, insira o implante antes das 8:43 PM, ou então ele irá se desativar e uma reprogramação será necessária. Desfrute do produto e descarte a embalagem adequadamente.”

Eu depositei o implante no aplicador, e então hesitei, mas não por muito tempo. Não era hora para agonia; eu havia agonizado durante meses, e estava cansado disso. Qualquer indecisão a mais e eu teria que comprar um segundo implante para me convencer a usar o primeiro. Eu não estava cometendo um crime; eu não estava nem sequer chegando perto de ter por garantido que cometeria um. Milhões de pessoas mantêm a convicção de que a vida humana não é nada especial, mas quantas delas são assassinas? Os próximos três dias simplesmente revelariam como eu iria reagir a essa convicção, e, apesar de a atitude ser forçada, as consequências estavam longe de serem certas.

Posicionei o aplicador na narina esquerda e apertei o botão de liberação. Houve uma rápida sensação de picada, e nada mais.

Eu pensei: “Amy teria me desprezado por isso”. A ideia me abalou, mas só por um momento. Amy estava morta, o que tornava irrelevantes seus sentimentos hipotéticos. Nada do que eu fizesse poderia magoá-la agora, e pensar de qualquer outra maneira seria loucura.

Tentei monitorar o progresso da mudança, mas isso era uma piada; você não consegue checar seus preceitos morais por introspecção a cada trinta segundos. Afinal de contas, minha avaliação de que eu era incapaz de matar havia se baseado em décadas de observações (muitas delas provavelmente já desatualizadas). Ainda mais, essa avaliação, essa auto-imagem, vinha a ser tanto uma causa das minhas ações e atitudes quanto um reflexo delas – e, além das mudanças diretas que o implante estava fazendo no meu cérebro, ele estava quebrando esse loop de feedback ao fornecer para mim uma racionalização para agir de uma maneira que eu havia me convencido ser impossível.

Depois de um tempo, decidi me embebedar para me distrair da visão de robôs microscópicos rastejando para todos os lados dentro do meu crânio. Foi um grande erro; álcool me deixa paranoico. Eu não me lembro muito do que sucedeu, exceto de flagrar a mim mesmo no espelho do banheiro, gritando “HAL está quebrando a Primeira Lei! HAL está quebrando a primeira lei!” antes de vomitar copiosamente.

Eu acordei logo após a meia-noite, no chão do banheiro. Tomei um remédio contra a ressaca e em cinco minutos a dor de cabeça e a náusea já haviam ido embora. Tomei um banho e vesti roupas frescas. Eu havia comprado uma jaqueta especialmente para a ocasião, com um bolso interno para a arma.

Ainda era impossível dizer se o negócio havia feito qualquer coisa em mim que ia além do efeito placebo; eu perguntei a mim mesmo, em voz alta: “a vida humana é sagrada? É errado matar?”. Mas eu não conseguia me concentrar na questão, e achei difícil de acreditar que algum dia eu já houvesse conseguido; toda a ideia me parecia obscura e complicada, como um assunto esotérico de algum teorema matemático. A expectativa de seguir adiante com meus planos fez meu estômago se agitar, mas era só o medo, nenhum ultraje moral; o implante não era destinado a me tornar corajoso, ou calmo, ou resoluto. Eu podia ter comprado essas qualidades também, mas isso teria sido trapacear.

Eu enviara um investigador particular para checar Anderson. Descobri que ele, Anderson, trabalhava todos os dias, exceto domingos, como segurança em um clube noturno de Surry Hills; morava nas redondezas e costumava chegar em casa à pé em torno das quatro da manhã. Eu havia sondado os arredores de sua casa de terraço diversas vezes, sem ter tido nenhum problema em localizá-la. Ele morava sozinho; tinha uma amante, mas eles sempre se encontravam na casa dela, de tarde ou no começo da noite.

Carreguei a arma e a depositei no interior da jaqueta, então passei meia hora encarando o espelho tentando decidir se o volume estava visível ou não. Eu queria um drinque, mas me contive. Liguei o rádio e caminhei pela casa tentando ficar menos agitado. Pode ser que tirar uma vida agora não era mais um grande problema para mim, mas eu ainda podia acabar morto, ou preso, e o implante aparentemente não me tornou desinteressado do meu próprio destino.

Eu saí cedo demais e tive que seguir uma rota mais longa para matar o tempo; mesmo assim, ainda eram três e quinze quando estacionei num local a um quilômetro de distância da casa do Anderson. Alguns poucos carros e taxis passaram por mim enquanto eu caminhava o restante do caminho, e estou certo de que eu estava com tanto empenho tentando aparentar tranquilidade que minha linguagem corporal irradiava culpa e paranoia – mas nenhum motorista ordinário teria notado ou se importado, e eu não vi um único carro de polícia.

Quando cheguei no local, não havia lugar nenhum para me esconder – nada de jardins, árvores ou cercas –, mas eu já sabia disso de antemão. Escolhi uma casa do outro lado da rua, mas diferente daquela que ficava bem na frente da casa do Anderson, e me sentei na escada da frente. Se o morador aparecesse, eu fingiria estar bêbado e sairia cambaleando para longe.

Sentei e esperei. Era uma noite morna, quieta e comum; o céu estava claro, mas cinzento e sem estrelas, graças às luzes da cidade. Eu continuava lembrando a mim mesmo: “Você não precisa fazer isso, você não precisa ir até o fim”. Então por que eu continuei? Pela esperança de me libertar das noites sem dormir? A ideia era risível; eu não tinha dúvidas de que, se eu matasse Anderson, isso iria me torturar o mesmo tanto que o meu desamparo com relação à morte de Amy.

Por que eu continuei? Não tinha nada a ver com o implante; no máximo ele estava neutralizando meus escrúpulos; ele não estava me forçando a fazer nada.

Por que, então? No fim, eu acho que eu via isso como uma questão de honestidade. Eu tinha que aceitar o fato desagradável de que, honestamente, eu queria matar Anderson, e, por mais que eu também tivesse me sentido repelido por essa noção, para ser honesto comigo mesmo eu tinha que fazer aquilo – qualquer coisa a menos teria sido hipocrisia e autoenganação.

Às cinco para as quatro eu ouvi passos ecoando rua abaixo. Enquanto virava meu corpo, eu esperava que fosse outra pessoa, ou que ele estivesse com um amigo, mas era ele, e ele estava sozinho. Esperei até que ele estivesse à mesma distância da casa dele que eu estava, e então comecei a andar. Ele me olhou de relance e depois me ignorou. Senti um choque de puro medo – eu não o avistava em carne e osso desde o julgamento, e eu havia esquecido o quão imponente era seu porte físico.

Tive de me forçar a desacelerar o passo, e mesmo assim eu cruzei por ele mais cedo do que pretendia. Eu estava usando tênis leves com sola de borracha, ele estava com botas pesadas, mas quando atravessei a rua e dei meia-volta em sua direção, eu não conseguia acreditar que ele não podia ouvir os batimentos do meu coração ou sentir o cheiro do meu suor. A alguns metros da porta, assim que consegui puxar a arma, ele olhou por sobre o ombro com uma expressão de vaga curiosidade, como se estivesse esperando um cachorro ou um pedaço de jornal arrastado pelo vento. Ele se virou para olhar para mim, franzindo o cenho. Eu só parei ali, apontando a arma para ele, incapaz de falar. Ao final ele disse: “O que você quer, porra? Eu tenho duzentos dólares na minha carteira. Bolso de trás”.

Balancei a cabeça. “Abra a porta, depois coloque as mãos na cabeça e abra com o pé. Não tente fechá-la antes de eu passar”.

Ele hesitou, depois obedeceu.

“Agora ande. Continue com as mãos sobre a cabeça. Cinco passos, só isso. Conte em voz alta. Eu vou estar bem atrás de você.”

Alcancei o interruptor para acender a luz do corredor quando ele contava quatro, então bati a porta atrás de mim e estremeci com o som. Anderson estava bem na minha frente, e eu subitamente me senti preso em uma armadilha. O homem era um assassino perverso; eu não havia desferido nem um soco desde os oito anos de idade. Será que eu realmente acreditava que a arma poderia me proteger? Com as mãos sobre a cabeça, os músculos dos braços e dos ombros se evidenciavam protuberantes contra a camisa. Eu deveria ter atirado nele naquele instante, atrás da cabeça. Tratava-se de uma execução, não de um duelo; se eu quisesse alguma exótica ideia de honra eu teria vindo sem a arma e deixado que ele me fizesse em pedaços.

Eu disse: “Vire-se para a esquerda”. À esquerda estava a sala de estar. Eu o segui e acendi a luz. “Sente-se”. Parei na soleira da porta, ele se sentou na única cadeira da sala. Por um momento, senti-me zonzo e minha visão ficou turva, mas acho que eu não tenha me movido, nem bambeado ou perdido a firmeza do corpo; se eu tivesse, ele provavelmente teria avançado sobre mim.

“O que você quer?”, ele perguntou.

Tive que pensar bastante sobre isso. Eu vinha fantasiando essa situação milhares de vezes, mas eu não conseguia mais lembrar os detalhes – embora eu me recordasse de que eu geralmente assumia que Anderson iria me reconhecer e começar voluntariamente a dar desculpas e explicações.

Em fim, eu disse: “Quero que você me diga por que você matou minha esposa”.

“Eu não matei sua esposa. Miller matou sua esposa”.

Balancei a cabeça. “Isso não é verdade. Eu sei. Os policiais me disseram. Nem tente mentir, porque eu sei”.

Ele me encarou com um olhar de malícia branda. Eu queria perder a cabeça e gritar, mas eu sentia que, a despeito da arma, isso teria sido mais cômico do que intimidador. Eu posso até tê-lo imobilizado com a arma, mas a verdade é que eu estava com medo de chegar próximo dele.

Então eu atirei no pé dele. Ele gritou e praguejou, depois se inclinou para inspecionar o dano. “Vá se foder!”, ele ganiu. “Vá se foder!”. Ele se balançou para trás e para frente, segurando o pé. “Eu vou quebrar a porra do seu pescoço! Eu vou te matar, filho da puta!”. O ferimento do buraco no pé sangrava um pouco, mas não era nada comparado aos filmes. Eu havia ouvido falar que balas de vaporização tinham um efeito cauterizante.

Eu disse: “Me diga por que você matou minha esposa”.

Ele aparentava estar muito mais raivoso e enojado do que amedrontado, mas acabou largando aquela história de fingir inocência. “Só aconteceu”, ele disse. “Foi só uma dessas coisas que acontecem”.

Eu balancei a cabeça, irritado. “Não. Por quê? Por que isso aconteceu?”.

Ele se moveu como se fosse tirar a bota, depois pensou melhor. “As coisas estavam saindo tudo errado. Tinha uma tranca eletrônica, provavelmente não teria dinheiro nenhum lá dentro, tudo estava uma grande merda. Eu não queria fazer aquilo. Só aconteceu”.

Balancei a cabeça de novo, incapaz de decidir se ele era um imbecil ou se ele estava me embromando. “Não me diga que ‘só aconteceu’. Por que aconteceu? Por que você fez aquilo?”.

A frustração era mútua; ele passou a mão pelo cabelo e franziu o cenho para mim. Agora ele estava suando, mas eu não saberia dizer se de dor ou de medo. “O que você quer que eu diga? Eu perdi a calma, tá legal? As coisas estavam indo mal, eu perdi a porra da calma e lá estava ela, tá legal?”.

A tontura me atingiu de novo, mas dessa vez ela não diminuiu. Eu entendia, agora; ele não estava sendo obtuso, ele estava dizendo toda a verdade. Eu já havia arremessado uma xícara de café durante uma situação tensa no trabalho. Uma vez, para a minha vergonha, eu inclusive já havia chutado a nossa cachorra depois de uma briga com a Amy. Por quê? Porque eu perdi a porra da calma e lá estava ela.

Olhei para Anderson e senti que eu estava sorrindo de um modo estúpido. Estava tudo tão claro agora. Eu entendi. Eu entendi como era absurdo tudo o que eu já havia sentido por Amy – meu “amor”, meu “pesar”. Tudo tinha sido uma piada. Ela era carne, ela não era nada. Todo o sofrimento dos últimos cinco anos evaporou; eu estava bêbado de alívio. Levantei meus braços e fui virando devagar. Anderson levantou num pulo em minha direção; eu atirei no peito dele até ficar sem balas, depois me ajoelhei ao seu lado. Ele estava morto.

Guardei a arma na jaqueta. O cano estava quente. Lembrei-me de usar meu lenço para abrir a porta da frente. Eu meio que esperava encontrar uma multidão lá fora, mas evidentemente os tiros haviam sido inaudíveis, e as ameaças e imprecações de Anderson não chegaram a atrair atenção.

A um quarteirão da casa, um carro de polícia apareceu virando a esquina. Ele desacelerou até quase parar quando se aproximou de mim. Mantive meus olhos retos para a frente enquanto ele passava. Ouvi o motor morrer. E depois parar. Continuei andando, aguardando o grito de comando, pensando: se eles me revistarem e encontrarem a arma, vou confessar; não faz sentido ficar prolongando a agonia.

O motor arrancou, acelerou com estrondo, e o carro foi embora rugindo.


Talvez eu não seja o número um entre os suspeitos mais óbvios. Eu não sei em que Anderson estivera envolvido desde que saíra da cadeia; pode ser que existam centenas de pessoas que tivessem motivos bem melhores para desejá-lo morto, e pode ser que, quando os policias terminarem com os demais suspeitos, eles venham até mim perguntando o que eu estava fazendo naquela noite. Mas um mês parece um tempo horrivelmente longo. Qualquer um poderia pensar que eles não se importavam.

Os mesmos adolescentes de antes estão reunidos em volta da entrada, e de novo a minha simples presença parece enjoá-los. Eu me pergunto se o gosto por moda e música tatuado em seus cérebros estaria destinado a esmorecer em um ano ou dois ou se eles juraram fidelidade por toda a vida. Não vale a pena pensar a respeito.

Dessa vez eu não procuro nada. Eu me aproximo do balcão de vendas sem hesitação.

Dessa vez eu sei exatamente o que eu quero.

O que eu quero é o que eu senti naquela noite: a convicção inabalável de que a morte de Amy – quanto mais a de Anderson – simplesmente não importava mais do que a morte de uma mosca ou de uma ameba, não mais do que uma xícara quebrada ou um chute em um cachorro.

Meu único erro foi pensar que o insight que eu obtive iria simplesmente desaparecer quando o implante fosse desativado. Não desapareceu. Ele foi obscurecido por dúvidas e reservas, ele ficou minado, em certo grau, por toda a ridícula panóplia de crenças e superstições, mas eu ainda posso recordar a paz que ele me deu, eu ainda posso recordar a torrente de alegria e alívio, e eu quero isso de volta. Não por três dias, mas pelo resto da minha vida.

Matar Anderson não foi honesto, não foi “ser honesto comigo mesmo”. Ser honesto comigo mesmo significaria viver com todos os meus impulsos contraditórios, sofrer com a multiplicidade de vozes na minha cabeça, aceitar dúvida e confusão. É tarde demais para isso agora; tendo provado a liberdade da certeza, descobri que eu não posso viver sem ela.

“Como posso ajudá-lo, senhor?”. O vendedor sorri do fundo do seu coração.

Parte de mim, é claro, ainda considera a ideia do que eu estou prestes a fazer totalmente repugnante.

Não importa. Não vai durar mais.

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