segunda-feira, 17 de setembro de 2018

E SE SÓ PUDÉSSEMOS LER UM ÚNICO LIVRO?


"Se você só pudesse ler um único livro na sua vida inteira, qual livro você escolheria?"

Com frequência, entre leitores habituais, alguém faz essa pergunta como que num desafio bem-intencionado. Trata-se, é claro, de uma simples brincadeira sadia (e que eu adoro sempre, já que cada vez escolho um livro diferente). Mas o que eu responderia se, mais do que uma condição hipotética para conhecermos as preferências literárias dos nossos amigos e as nossas próprias preferências, a pergunta fosse mesmo pra valer?

Embora eu fique tentado a escolher, de entre todos os livros que conheço, o maravilhoso Sagarana, do Guimarães Rosa – por ser um dos mais divertidos – ou Os Elementos, de Euclides – por ser o mais duradouro –, a verdade é que, no final das contas, eu não escolheria nenhum.

Ler um único livro é pior do que não ler nenhum. Se lêssemos apenas um livro, ficaríamos condicionados a seu estilo, adstritos a seu vocabulário, viciados em seu tom, engaiolados em suas ideias, manipulados por seus argumentos e cegos para seus erros, defeitos, inconsistências e incompletudes (características inevitáveis em qualquer obra orgânica).

Se lêssemos apenas um livro, nosso mundo se encolheria, ao invés de se expandir, pois, em razão da ausência de contraste, as possibilidades da existência se fechariam para a nossa percepção, ao invés de se multiplicar. Se lêssemos apenas um livro, com o tempo nossos olhos só veriam as cores mencionadas nesse conjunto invariável de letras sobre papel, e sempre enxergaríamos essas cores com os mesmos matizes, através dos mesmos nomes; de igual modo, os sons pouco a pouco convergiriam para os mesmos timbres e ritmos, e os aromas perderiam suas nuances, esvaecendo-se de vez. Se lêssemos apenas um livro, cedo ou tarde fatalmente nos tornaríamos lunáticos abobalhados ou monomaníacos perigosos, alheados de tudo aquilo que é ou pode ser real: nos tornaríamos ovelhas adestradas sem livre-arbítrio ou então fanáticos desgovernados como certos supostos religiosos que, na prática, só fazem o oposto daquilo que proferem em seus sermões. 

Vou com Italo Calvino: “todo livro novo que lemos é como um novo olho que se abre e modifica a visão dos outros olhos ou livros-olhos que tínhamos antes”. De fato, um livro medíocre que outrora parecera extraordinário é logo superado e esquecido por um leitor contumaz, mas um livro realmente bom fica melhor a cada novo livro que lemos e a cada nova vivência que experimentamos, conforme as camadas mais profundas de seus significados vão se abrindo para nossos intelectos e corações, os quais são eternos aprendizes. É por isso que, a cada dia que passa e eu conheço mais sobre o mundo, para mim Poe se torna mais sombrio, Lovecraft, mais imaginativo, Pynchon, mais paranoico, Hemingway, mais vigoroso, Twain, mais aventureiro, Dostoiévsky, mais arguto, Calvino, mais fabuloso, Kafka, mais onírico-realista, Rosa, mais intrépido, etc., etc., etc...

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