sábado, 27 de outubro de 2018

CONTO: O SORVEDOURO DAS ALMAS PERDIDAS


O conto O Sorvedouro das Almas Perdidas foi originalmente publicado na antologia "Não Leia! – Contos de Terror", organizada pela Raquel Pagno e lançada pela Editora Fonzie em 2016. Com a recepção positiva do público, e em especial após os comentários extremamente elogiosos que o conto recebeu na resenha do Rubens Pereira, do canal Ler Vicia, e na da Bárbara, do canal Livros Ácidos, resolvi disponibilizá-lo na íntegra aqui para vocês. Trata-se de uma das minhas histórias mais peculiares, tanto na forma quanto no conteúdo, e uma das que mais me deixaram satisfeito (além de perturbado...).

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O SORVEDOURO DAS ALMAS PERDIDAS – Melvin Menoviks

Sob nubloso céu diurno, avermelhados crepúsculos infernais e noites que eram as mais hórridas, negras e assombrosas que já se estenderam por sobre a Terra, arduamente peregrinei em áridas planícies cinzentas ladeadas por pedregosas cordilheiras escarpadas, pontiagudas, até finalmente conseguir alcançar o Sanatório Wilhelm-Has, onde meu irmão, Jervas Eldritch, se encontrava confinado, enlouquecido, para passar seus últimos dias de vida – dias que vieram a se tornar semanas, e depois meses, e depois anos de angustiosa sobrevida.

A viagem, muito mais longa nas horas da mente e do coração do que nas do relógio, foi dificultosa e cansativa – tão escabrosa quanto o solo pelo qual a carruagem se locomovia, aos solavancos durante o dia, misteriosamente sem trepidações durante a noite, como se os acidentes do relevo se modificassem conforme as oscilações do sol e da lua, seguindo leis incompreensíveis que só ali se aplicavam. As manhãs desesperançosas, sem brilho e sem ânimo, começavam com uma refeição detestavelmente pastosa servida pelo cocheiro (um homem estúpido, convulsivamente risonho, que, sendo mudo, produzia grunhidos abjetos quando queria indicar algo com suas mímicas desajustadas). E era o próprio cocheiro, de nome Józef Sjöström, que, após o desgostoso repasto matinal, tocava a trombeta de bronze antes de pôr os cavalos em movimento.

Às intermináveis andanças matinais se seguiam as silenciosas andanças vespertinas, demasiado vagarosas, sempre debaixo de um céu opressivo, meio cinzento e meio amarelado: tonalidade suja de pastel apodrecido, de papel envelhecido, de pardas fotografias esquecidas por tempo demais em gavetas empoeiradas... – o triste bege-turvo que foscamente cobria o fulgor do sol: fulgor debilitado, langoroso, anêmico e alquebrado de deserto sob tempestade de areia. Nesse tempo todo, ouviam-se apenas os rangidos da carruagem – nhéééiim... nhénhéim... renhénhéééiim... – e, vez ou outra, os gritos esganiçados de algum pássaro maldito que vinha voando mais baixo para anunciar agouros de morte e sofrimento.

As tardes arrastadas, de atmosfera pesada e tempo em suspenso, eram fastidiosamente enlouquecedoras, mas piores eram as noites: as insones e pavorosas noites de tétrico luar azulado. Durante o dia todo, seguindo o aflitivo ritmo metálico da carruagem – nhéééiim... nhénhéim... – uma angústia intolerável crescia dentro de mim na expectativa longa – longuíssima! dolorosíssima! – pelo anoitecer. Então, o ocaso vinha flamejante, com plúmbeas nuvens negras disputando o céu revoltoso contra fulgentes nuvens vermelhas como brasa; as trevosas gradativamente vencendo as rubras até o cair total da escuridão da noite.

Noites frias, noites estranhas! Noites povoadas de demônios...

Gélidos gemidos grasnantes corriam os ares, furando a alma... Assombrações aladas, sombras afiadas, funestas imagens de medo e loucura surgiam em meio à penumbra e às trevas – esquivas, ignotas, dissimuladas, amaldiçoadas: a noite, ali, era recanto místico de monstros e magias, de bruxas e fantasmagorias, de wendigos, wurdulaks, krampus, íncubos e súcubos – uma legião de seres inomináveis que só as mais recônditas e obscuras reentrâncias do Além conhecem ou podem conhecer. E, rodopiando ao redor do coche, zombeteiras, ameaçadoras, ignóbeis, nefandas, nefastas, essas aparições aflitivas rasgavam violentamente o véu que existe entre a razão e a insanidade, trazendo todos os bufões do Inferno para perambular à solta pelo descampado, sádicos e sardônicos, fustigando a mente dos viajantes com brincadeiras satânicas, troças demoníacas, pilhérias macabras de pura crueldade.

Enquanto o mundo inteiro dormia, esses eram precisamente os horários em que naquele lugar não havia espaço para o sono. As quimeras diabólicas, espalhadas noite afora, abriam chagas incandescentes na imaginação daqueles que por ali passavam: formas heteróclitas, vultos indistintos, o mal sempre à espreita atrás de algum arbusto, de alguma formação rochosa, de alguma carcaça animal que apodrecia ao relento...

Tormentos inefáveis ganhavam vida como as sombras de Hades ao beberem sangue: criaturas lânguidas, esguias, pálidas e borrachudas, sem mãos e sem olhos, dançando tresloucadas pela semiescuridão ominosa. Bichos humanoides de rutilantes olhos alaranjados, ostentando longas fileiras de dentinhos serrilhados, rindo, chorando, rosnando e gargalhando em minha direção. Ectoplasmáticos espíritos incorpóreos volvendo-se e revolvendo-se pela escuridão sem fim numa luminosa miríade sibilina. Sílfides nuas de longos cabelos flutuantes voejando e revoando pela neblina diáfana, entre beijos, carícias e etéreas insinuações lascivas. Uma ninfa linda, também desprovida de vestes, de branquíssima pele macia como veludo, com as pernas abertas para um monstruoso sapo de dois metros de altura que lhe introduzia a gigantesca língua áspera. Aberrações pedregosas, pesadas, carregadas de bulbos e tumores descomunais, arrastando-se erráticas pelo solo agreste, de seus furúnculos expelindo venenosos vapores cáusticos. Meninos-lagartixas correndo saltitantes entre os monstros, chicoteando a todos em meio a risos alucinados, desvairados: um carnaval de almas assombradas em estrambótica procissão de bestialidades indizíveis.

A visão se fazia vermelha de sangue latejante, e o cérebro se tornava magma em ebulição: imagens, sons, pensamentos e sensações transformando-se em lava fervilhante a formar bolhas que inchavam e explodiam, inchavam e explodiam, inchavam e explodiam...

A noite inteira era assim – todas as noites, noite após noite! – com a sinistra folia de mortos que não descansam e não nos deixam descansar. Durante a viagem toda, só consegui rápidos momentos de cochilo durante a tarde, quando minhas pálpebras, parecendo feitas de chumbo, caíam pesadas, exaustas, e minha cabeça pendia mole sobre o peito, indo para lá e para cá com o balouçar enjoativo da carruagem. Mas esses semicochilos esporádicos não eram suficientes para reestabelecer minhas energias, pois o clarão turvo da tarde, acompanhado de um desalentador calor abafado, impedia qualquer tentativa de repouso, provocando apenas sonhos febris. Assim, o percurso todo me foi arrastado e letárgico como uma passada pelo purgatório: dias esmorecidos em que o único descanso era o da síncope seguidos por noites infernais de tormentos inenarráveis – ciclicamente, repetidamente, vertiginosamente, enlouquecedoramente, dementemente.

O mesmo não sucedia com aquele que, à exceção do cocheiro, era meu único companheiro de viagem: o cego porto-riquenho Horacio Fuentes, velho magro e lacônico, de feições severas, barba caprina e olhos infinitamente leitosos que sempre estavam abertos, fixos no nada. Mais parecido com uma estátua de mármore do que com um ser humano, Horacio Fuentes não falava mais do que o cocheiro mudo, embora ainda tivesse intactas suas cordas vocais. Esse senhor carrancudo, sempre fechado em si mesmo e sempre apoiado em uma bengala de madeira empenada, parecia dormir tranquilamente durante as horas noturnas, indiferente a tudo aquilo que me assombrava. Ainda que intrigado, eu não era capaz de lhe perguntar o porquê dessa sua tranquilidade – eu tinha asco daquele velho imundo! Além de todas as características ensejadoras do repúdio que já mencionei, o que mais me causava estranheza e aversão no velho silencioso era uma marca suja que ele tinha em volta do pescoço, uma espécie de cicatriz mastigada e enegrecida que, irracionalmente, me inspirava profundíssimo temor incontrolável, de modo que eu evitava a todo custo olhar para ela, embora a curiosidade (irmã siamesa da perversidade e precursora imediata da ruína) fizesse com que eu raramente obtivesse sucesso em minhas precauções.

Numa tarde particularmente sufocante de nossa viagem, sentindo-me imerso num rio de águas turvas, avistei, ao longe, um ermitão de vestes esfarrapadas vagueando perdido, como se sem destino. Súbito, ordenei ao cocheiro que parasse. Dirigi-me, então, àquela figura esquálida, de ossos protuberantes servindo como cabides a uma ressecada pele sem carne:

— O que fazes caminhando por estas terras, meu senhor? Queres entrar em minha carruagem? Dirijo-me ao Sanatório Wilhelm-Has, onde hei de encontrar o psiquiatra de meu irmão, Jervas Eldritch, para saber como anda a saúde dele. Depois, posso deixá-lo onde o senhor bem entender, para poupar-lhe alguns quilômetros de andanças. O dia está quente e o caminho é duro como a morte. Aceitas meu generoso convite?

Frente à ausência de resposta do ermitão cadavérico, que se limitava a me encarar de canto de olho, lancei-lhe mais algumas palavras bondosas, buscando firmar um diálogo por meio de gentilezas adicionais:

— Não faço esta viagem por vontade própria, mas por intimação expressa do psiquiatra, que deseja que eu tome ciência do estado psíquico de meu irmão. Não fosse assim, levar-lhe-ia de pronto ao seu destino, pobre homem. O senhor não deseja água, comida ou ao menos um teto para cobrir-lhe o corpo cansado?

O esqueleto ambulante, então, assim respondeu, apontando-me um longo dedo trêmulo e nodoso:

— Amaldiçoado sejas tu por me ofereceres condução, ser desprezível! Tu, moribundo, estás mais perdido e mais sozinho do que eu, que vagueio sem pão e sem vinho! Tu, fardo entre os vivos e imundice entre os mortos, és escória eterna que negreja! Tu, que andas em companhia de enforcados e fantasmas, vejas bem: as veredas do tempo se bifurcam para ti como num labirinto de espinhos, e a miséria não tardará a chegar a teu cérebro degringolado. Dirige teus calcanhares para trás, e não para a frente, miserável homem. Escuta bem o que te digo: dirige teus calcanhares para trás, e não para a frente, miserável homem!

Suas palavras eriçaram os pelos do meu braço e fizeram com que um calafrio intenso percorresse minha espinha. A careta de deboche do nômade eterno, assemelhando-se a uma máscara de cera que é derretida, foi tão pavorosa que, sem delongas, fechei a porta da carruagem e mandei o cocheiro seguir depressa, o mais rápido possível, para bem longe dali, enquanto escutava suas gargalhadas ensandecidas se esvaecendo na mesma proporção em que dele galgávamos distância. Só fui me tranquilizar um pouco quando aquela alma penada já havia sumido de vista, levando para outro rumo seus passos amaldiçoados e suas palavras de danação. Mas minha paz durou pouco: logo as nuvens se incendiaram no crepúsculo vermelho e, rápida, rápida, a noite se abateu sobre a realidade – a noite que foi a mais detestável, a mais execrável e a mais enlouquecedora de todas as que já vivi.

Primeiro, avistei cães enormes que destroçavam um corpo humano, triturando ossos e dilacerando restos ainda frescos de carne úmida. Ao longo do festim, iluminados apenas pelo lampião que chacoalhava na parte exterior da carruagem, monstrengos esquisitos, similares a faunos selvagens, aproximaram-se da refeição pútrida em passadas largas e, deslumbrados, cheios de temor e reverência, com meneios estranhíssimos e mesuras místicas como se estivessem venerando algum deus muito poderoso, puseram-se a desfiar, um a um, os nervos daquele corpo mutilado, puxando-os para fora da carne e esticando-os até onde podiam, como se os nervos  fossem as cordas de algum profano instrumento musical a ser dedilhado num ritual primitivo, ancestral. Foi só quando escutei os gritos – os arrepiantes gritos e gemidos de desesperada dor pungente! – que compreendi que o corpo não era o de um cadáver, mas o de um homem que ainda vivia!

Abalado, olhei para Horacio Fuentes, meu imperturbável companheiro de viagem, em busca de alguém com quem compartilhar minha revoltante sensação de impotência perante  a triste sorte do homem trucidado. O porto-riquenho, contudo, dormia sentado, no mesmo lugar de sempre, na mesma posição de sempre, não deixando nada a dever a uma escultura sem vida. Józef Sjöström, o cocheiro, permanecia lá fora, provavelmente dormindo com as rédeas enroladas na mão: Józef, por vontade própria, só saía de seu lugar nas rédeas para fazer minhas refeições; em nenhuma outra circunstância, nem mesmo para dormir, ele deixava as rédeas ou parava a carruagem, e os cavalos sempre seguiam em frente, como se ele os comandasse mesmo enquanto dormia, como se os comandasse mesmo em sonhos.

Fechei com força minhas pálpebras doloridas e apertei as têmporas em busca de alguma forma de escapar da realidade. Pouco depois, quando tornei a abrir os olhos, Horacio Fontes, na posição de costume, estava com os olhos bem abertos – um deles estava fincado em mim, como numa acusação; o outro estava vazado, escoando sangue e pus, talvez até bigatos. Assustado, afastei-me o mais que pude daquele lúgubre senhor de pele macilenta e pus-me a olhar pela janela. Lá fora, mais aberrações surgiam, amontoando-se como se numa dança da morte. As imagens eram desconcertantes: homens, mulheres e esqueletos pestilentos, trajados com burlescas fantasias de realeza, contorcendo-se e rodopiando em piruetas, volteios e fouettés numa orgia rítmica, extravagante; uma criança ensanguentada de um olho maior que o outro enfiando os tentáculos de um molusco gelatinoso entre as nádegas de um amigo de três braços; querubins flanando em êxtase com as vísceras expostas, utilizando seus conteúdos abdominais como laços e adornos grotescos; entidades gasosas feitas de negrume e enxofre espalhando-se pelos ares em hediondos desenhos de caveiras e deformados rostos abomináveis; duendes de pura maldade, banhados em gordura viscosa, cortando-se uns aos outros com punhais brilhantes e faquinhas serrilhadas; monstruosidades fungiformes de muitos olhos, feitas de cartilagem e músculos encaroçados, espirrando jatos e mais jatos de sangue para o alto, tingindo a cena toda de vermelho vívido enquanto, ensandecidas, urravam de dor e prazer; cadáveres vivos caminhando pela planície soturna, morféticos, vestidos com roupas esfarrapadas e arremessando pedaços de órgãos e membros amputados na carruagem e no rosto de todos aqueles que passavam pela frente...

Já nos últimos suspiros da noite, acima de toda a espantosa selvageria barroca, um clarão comprido surgiu serpenteado pelo céu escuro: longo rastro luminoso se revirando e se retorcendo numa dança sublime, delirante – fulgência imaterial em forma de enguia bailando a esmo rumo à vastidão do negro firmamento celeste.

Então, já na antemanhã, as criaturas da noite recolhidas em seus covis abscônditos, avistei, enfim, as torres do enorme castelo que constituía o Sanatório Wilhelm-Has. O castelo todo, em sua imensidão imponente, terrífica, com paredes e janelas deterioradas, cobertas de heras e infestadas por samambaias de diversos tamanhos, espécies e colorações, não tardou a se revelar à minha frente, no fim do caminho espremido entre cordilheiras que a carruagem vinha percorrendo aos sacolejos. Na frente dos portões enferrujados, desci do veículo, praticamente sonâmbulo, quase desmaiando em decorrência dos meses de privação do sono, e fiz sinal para o cocheiro regressar em seu trajeto. Sem me despedir de Józef ou de Horacio Fuentes – secretamente sentindo-me aliviado por abandonar-lhes a incômoda companhia – cruzei o portão, que se encontrava entreaberto, percorri um extenso jardim ressecado, um lodaçal pestilento coberto por um umbroso salgueiro semimorto e, cuidadosamente, empurrei a porta de ferro da entrada principal, a qual, embora estreita, era alta o suficiente para permitir a passagem de um daqueles gigantes abobalhados das estórias infantis.

Dentro do sanatório, os salões eram amplos como o vazio que existia em minha alma. Em meio à decrepitude generalizada, apenas os móveis se encontravam em bom estado de conservação. Eram móveis de madeiras escuras, avermelhadas, cor de vinho à meia-luz, grosseiramente estilizados com grossas estrias e ranhuras sombrias . Todo o resto estava em caótica ruína, e, à exceção das plantas exóticas, dos profusos fungos e de mim, em canto nenhum havia viv’alma. Embora em lugares inesperados pulsassem misteriosas luzes roxas, violetas, verdes e azuis, o lugar era uma autêntica desordem claro-escura, com sombras entrecortadas, formas oblíquas, ângulos denteados, declives abruptos e janelas inclinadas que nunca deixam penetrar a luz do dia. Atrás dos vidros pontilhados das janelas e dos postigos, vultos se moviam apenas quando eu não estava olhando, e eu tinha a certeza de que as sombras tramavam complôs satânicos contra mim. Os objetos me encaravam com perfídia, com schadenfreude, e a atmosfera rescendia a perigo e malevolência. Em algum lugar, certamente, escondido estava algum antro sangrento reservado especialmente para mim...

Explorando, amedrontado, as câmaras, as salas, os recôncavos, os sótãos e os porões daquele sanatório perdido no tempo, sentindo-me abalado pelas entradas obscuras que pareciam gargantas escancaradas num eterno esgar de dor, finalmente alcancei uma porta que me atraía mais do que qualquer outra. Ao lado dessa porta ricamente ornamentada com arabescos e filigranas de metais preciosos, turíbulos de prata pendiam de correntes finas emanando sutil fumaça odorífera, e acima havia um vitral através do qual palpitava um brilho purpúreo esplendoroso, quase feérico, embora medonhamente aterrador. Ao abrir tal porta, bem lentamente, ouvindo o tilintar de cristais e o ressoar de ecos lamuriantes que abalavam o coração, encontrei-me em uma ampla sacada imersa num universo cinéreo-púrpura, onde ventanias viam de todos os lados, como num furacão, e bramidos ensurdecedores cortavam os ares, ferindo meus tímpanos. Na sacada, três figuras cobertas por túnicas e capuzes negros me aguardavam, pacientes, solenes mesmo em meio ao vendaval apocalíptico. O mais alto dos três sacerdotes fúnebres, ao notar minha presença, abriu os braços e disse:

— Finalmente chegaste! Em boa hora, em boa hora... Venha, temos algo a lhe mostrar. Baal e Beliel aguardam-no , impacientes, impacientes!

— Fizeste boa viagem com o enforcado? — perguntou, sarcástico, o outro homem encapuzado.

Em razão da ventania avassaladora que dominava o local, fazendo muros ruir e arrastando corpos pesados para o olho do furacão, era difícil ouvir com clareza as palavras dos sacerdotes, embora retumbantes fossem suas vozes cavernosas.

— Onde está meu irmão, Jervas Eldritch? — questionei, mais agressivo do que pretendia. — Ele ainda está vivo? Ele foi curado da loucura que o acometia?

O sacerdote-mor soltou uma risadinha entristecida e pôs a mão em meu ombro direito como se estivesse me consolando e, ao mesmo tempo, caçoando de minha ingenuidade.

Levado pela mão do lutuoso sacerdote até o parapeito da sacada, vi, muito lá embaixo, no final do desmedido precipício, um enorme redemoinho de um sidéreo roxo-escuro, parecido com uma galáxia rodopiando no vácuo cósmico, trovejando em rotações espiraladas feito  um buraco-negro tragando tudo para sua voragem infinita que tudo destrói. Grandes pedaços de mármore dos pilares do castelo eram engolidos  por aquele turbilhão gigantesco, desaparecendo, aniquilando-se, sendo esmigalhados à inexistência completa. Espectros humanoides ricocheteavam, tentando escapar do torvelinho, mas logo eram sugados e também desapareciam, destruídos, eliminados, dizimados: obliterados para todo o sempre. O vento chiava, assoviava, gemia, gania e ululava.

Então, erguendo os braços como numa oblação à divindade, sua túnica assemelhando-se às asas de um morcego imenso, o sacerdote, em tom grandioso, megalomaníaco, proferiu as seguintes palavras:

— Seja bem-vindo ao Sorvedouro das Almas Perdidas ! Seja bem-vindo ao Maelström dos Condenados, onde seu espírito será sugado para o fim total, onde sua essência encontrará a aniquilação absoluta no vórtice infinito que tudo atrai e tudo devora para alimentar o Grande Deus Nihil!

Em seguida, cochichando ao pé do meu ouvido, o sacerdote assim disse, antes de me empurrar para a boca ávida do sorvedouro aniquilador:

— Encontre a paz da sua alma, pobre Jervas Eldritch.

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