sexta-feira, 1 de junho de 2018

SOBRE A LIBERDADE E A FICÇÃO DE TERROR


Tomar a ficção como uma forma de representar a realidade, dela destacando as cores e contornos que mais interessam ao ficcionista, é uma interpretação válida e sensata. Outro ponto de vista relevante – dentre todos os inúmeros possíveis – é aquele que nos faz enxergar a ficção como uma fuga voluntária da realidade (a “suspensão da descrença”, na feliz definição de Coleridge). Por uma perspectiva ou pela outra, ou mesmo nas misturas que podem existir entre elas, a concepção de que filmes, livros e jogos de terror fazem mal às pessoas (em especial às crianças) é um equívoco que até hoje trouxe mais prejuízos do que benefícios àqueles que, ainda que com boa intenção, tentaram censurar obras violentas e perturbadoras.

Neste ponto, sempre me recordo da lúcida observação que Bertrand Russell fez em seu clássico ensaio “No que acredito”: segundo o pensador, o homem racional, que busca se inspirar pela empatia e ser guiado pelo conhecimento, nunca aceitará para si que um ato é moralmente errado apenas porque esse ato assim é considerado pelos demais ou por tradicionalmente ser rotulado como pecado; em verdade, o homem bem intencionado e instruído “investigará se tal ato verdadeiramente acarreta algum mal, ou se, pelo contrário, o que acarreta algum mal é crê-lo pecaminoso”.

Coloquemos a questão, portanto, nos seguintes termos: filmes bizarros, jogos com sangue e mutilações e livros sobre tétricos mistérios sobrenaturais realmente acarretam mal às pessoas ou, pelo contrário, o que acarreta algum mal é proibi-los daqueles que têm a curiosidade de conhecê-los e de com eles se divertir? Para mim, a resposta parece óbvia demais, mas talvez meus valores pessoais não coincidam, ou sequer estejam próximos, daqueles de quem lê estes parágrafos (se coincidissem com os de todo mundo, não haveria motivo para eu estar escrevendo o que agora escrevo, não é verdade?). Tudo o que posso fazer, neste caso, é expor meu ponto de vista pela simples paixão que tenho nele, uma vez que induzir à força que outros tenham a mesma visão que eu tenho, além de não passar nem perto de ser meu interesse, iria contra os próprios pressupostos que adoto para defender a liberdade das pessoas – em especial a dos jovens – de assistir coisas o quão grotescas e nojentas elas desejarem.

Penso da seguinte forma: a principal característica da boa ficção de terror é utilizar imagens aberrantes e/ou ideias assombrosas para desnudar os fatos e comportamentos humanos da camada de normalidade que a constância do dia a dia faz com que eles fiquem revestidos. Uma boa história de terror não quer mostrar uma violência gratuita porque acha que essa violência seja legal na vida real; uma boa história de terror quer mostrar a violência, ou a perturbação, ou a paranoia, ou o medo, ou o que quer que seja de terrível, justamente para evidenciar o caráter absurdo dessas coisas todas, justamente para relembrar que essas coisas não são legais na vida real. É por isso que afirmo sem medo de errar que o terror, em geral, é menos nocivo para a formação moral e conscienciosa de uma pessoa do que boa parte das comédias que existem por aí (e isso mesmo levando em consideração que as boas histórias de horror não estão dando a mínima para moralismos ou questões existenciais: elas só querem assustar, chocar e perturbar, ou pelo menos divertir e zoar à toa[1]).

Basta nos lembrarmos das mais simples piadas de loira burra ou dos trocadilhos cínicos sobre política que circulam nas redes sociais para constatar que a comédia, em seu caráter apaziguador supostamente ingênuo, tende a banalizar situações problemáticas, a normalizar preconceitos vexatórios, a nos cegar para violências reais e a amenizar o impacto necessário que certos conflitos provocam em nosso conforto, anestesiando-nos contra os problemas mais elementares que devemos enfrentar.

O grande lance do terror, por outro lado, é fazer com que olhemos para os fatos, reais ou imaginários, com curiosidade e estranhamento, como se eles não fossem normais[2], como se estivéssemos conhecendo-os pela primeira vez, como se o mistério essencial da existência estivesse se descortinando diante dos nossos olhos, permitindo que vislumbremos o mundo por ângulos dos quais nunca antes havíamos cogitado olhar. Assim, a neutralização ofuscante que domina nossos sentidos e raciocínios em razão da frequência diária da vida normal é atacada com ímpeto, e a poeira que no dia a dia vai se acumulando em nosso espírito, lentamente encobrindo nossa imaginação e sufocando nossa livre inteligência, é varrida para fora do nosso ser (“a ficção é o colírio para o olho da mente”, disse Alejandro Jodorowsky; e Lovecraft já havia nos alertado: “nenhum horror pode ser mais terrível do que a tortura diária da banalidade”).

Criar estranhamento, provar que sempre existe algo de novo a ser revelado, surpreender expectativas para que fiquemos vulneráveis ante o desconhecido, romper o sistema ilusoriamente rígido de nossas crenças e valores racionais para que, uma vez mais, fiquemos expostos à realidade nua e crua das infindas possibilidades da vida: aí está a ficção de terror em sua melhor forma[3].

No cotidiano, acabamos escondendo em entulhos nossas angústias e temores com uma carga imensa de frivolidades invisíveis e fugas mundanas e desculpas inconscientes e vícios aparentemente inofensivos. Raramente encaramos nossos receios mais assombrosos e nossos inimigos mais implacáveis face a face. Ocorre que, no final das contas, é o confronto com esses inimigos internos e assombros perenes que gera a chama que aquece nossas maiores virtudes: nossa criatividade, nossa energia, nossa inteligência, nossa consciência, nossa originalidade, tudo o que temos de mais valioso advém da guerra ininterrupta entre os vetores conflitantes que compõem a nossa alma. Eis a vida, enfim, surgindo do “bem” versus o “mal”, seja lá o que esses conceitos signifiquem ou possam significar para cada indivíduo.

Suprimir a possibilidade de um pré-adolescente conhecer os fantasmas sombrios de psiques devastadas ou as agonias plangentes de almas estilhaçadas ou, ainda, a putridez fétida e viscosa da matéria em decomposição é permitir que eles continuem incônscios da existência desses monstros (que são muito reais) e, por consequência, deixá-los vulneráveis às garras cruéis desses monstros inclementes. Melhor do que repetir mil vezes “não coloque o dedo na tomada”, apelando para a autoridade ou para o sentimentalismo manhoso, é ensinar que o choque existe e que ele dói e mata[4]. Melhor do que esconder a existência do inferno ou fingir que ele seja apenas uma ficção cristã é mostrar que ele é real e que muitas pessoas caem nele todos os dias, não quando morrem, mas, sim, quando estão de olhos abertos e respirando sobre a terra sem um propósito verdadeiro ou se arrastando atrás de máscaras enquanto veneram um objetivo contrário às suas naturezas[5].

De Italo Calvino: "O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço". Pessoas corajosas, intelectualmente inquietas e sadiamente curiosas normalmente escolhem a segunda opção. É assim que se forja um espírito intrépido contra as vicissitudes do mundo real. É assim que se cria autonomia e força de vontade. É assim que se edifica um caráter realmente sólido e autoconsciente[6].



[1] Sobre a importância do “não dar a mínima” e “zoar à toa”, talvez seja relevante observar que as ciências psicológicas mais avançadas já afirmam que, nas crianças, o desenvolvimento criativo e emocional é estimulado com maior eficácia em brincadeiras livres, sem um objetivo pré-estipulado, do que por meio de brinquedos estritamente didáticos e atividades lúdicas que restringem a perspectiva da criança a um único propósito, ainda que educativo (como colocar quadrados e círculos em seus respectivos espaços ou arrastar figuras de madeira por fios espiralados, por exemplo). As atividades lúdicas didáticas são importantíssimas para a aquisição de noções lógicas e espaciais, mas falham quando o assunto é incitar outros traços da personalidade, como a imaginação, a criatividade, a emoção e o autoconhecimento. Nesses pontos em particular, jogos “sem sentido”, surgidos da vontade espontânea das crianças, e histórias nonsense (Alice no País das Maravilhas, por exemplo) são mais bem-sucedidos do que desafios de lógica e fábulas admoestatórias. Analogamente, adolescentes que se divertem com jogos violentos de mundo-aberto, como GTA e Driver, ou com desafios estéticos impossíveis no mundo real, como Tony Hawk Pro Skater, God of War, Prince of Persia, Tomb Raider, Mortal Kombat e os FPSs, tendem a se tornar adultos mais criativos e emocionalmente independentes. Quanto a possíveis traumas ou distúrbios advindos da exposição à violência gráfica, os pais não precisam se preocupar: crianças e adolescentes sabem, instintivamente, e com mais força do que os calejados adultos, diferenciar o que é realidade do que é apenas uma aglomeração de imagens e movimentos sensorialmente prazerosos (nos universos desse tipo de entretenimento, ética e moral são conceitos estrangeiros, sendo que a diversão provém direta e quase que exclusivamente da presença de uma atividade desafiadora que requer habilidade, onde o que está em jogo são níveis de ansiedade e tédio, não as complexas balanças morais que só surgirão na vida adulta).

[2] Um pai alcoólatra batendo no filho não é algo normal (O Iluminado). Uma adolescente flagelando o próprio corpo em agonia psicológica indizível não é algo normal (O Exorcista). Um adulto perdendo a cabeça e atacando a mulher amada durante uma fúria repentina, mas de resultados irreversíveis, não é algo normal (O Gato Preto). Uma mulher entrando em desespero emocional por uma solidão que ela não consegue entender ou sequer explicar não é algo normal (Babadook). Em todos esses casos, e em muitos outros, temos que afastar a normalidade neutralizante com que olhamos para essas situações. Só assim poderemos fazer algo a respeito, voltando a olhar para esses casos como o que eles de fato são: casos perigosos, preocupantes, que não podem ser aceitos como naturais. O que fazer em cada caso? É para descobrir isso que vivemos em comunidade. É para isso que precisamos uns dos outros.

[3] A vantagem disso para a aprendizagem, mesmo em adultos, é enorme. Veja a observação do neurocientista Mariano Sigman em “A Vida Secreta da Mente” e tire suas próprias conclusões:

“Um dos modelos mais comuns de aprendizagem humana [...] é o erro de previsão. É simples e intuitivo. A primeira premissa, para cada ação que realizamos, desde a mais mundana à mais complexa, é que construímos um modelo interno, uma espécie de prelúdio simulado daquilo que vai suceder. Por exemplo, quando cumprimentamos alguém num elevador, presumimos que haverá uma resposta positiva dessa pessoa. Se a resposta for diferente daquela que esperávamos – por ser exageradamente calorosa ou friamente reticente –, experimentamos uma surpresa.

Esse erro de previsão expressa a diferença entre o que esperamos e o que observamos na realidade, e isso se codifica em um circuito neuronal nos gânglios basais que gera dopamina. A dopamina é um neurotransmissor que funciona, entre outras coisas, como mensageiro da surpresa, espalhando-se por diferentes estruturas cerebrais. O sinal dopaminérgico reconhece a dissonância entre o previsto e o encontrado, e é combustível vital para a aprendizagem, pois os circuitos irrigados por dopamina se tornam maleáveis e predispostos à mudança. Na ausência de dopamina, em contraposição, os circuitos neuronais são em sua maioria rígidos e pouco maleáveis.”

[4] "Há um poço. E há aquele modo velho de ensinar: não se aproximem do poço. E há depois um outro modo: tenho uma corda com o tamanho exato: atirem-se ao poço, permaneçam alguns dias, e quando quiserem, subam pela corda que vos ofereço. Eis duas pedagogias: a do medroso e a daquele que conhece a importância da curiosidade e da fita métrica." – Gonçalo M. Tavares, trecho do livro "Biblioteca".

[5] A respeito disso, minhas palavras não seriam melhores do que aquelas de David Foster Wallace no discurso “Isto é água”:

“Nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de ‘não venerar’. Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E se existe uma razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe dos Wicca, as Quatro Nobres Verdades ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que praticamente todas as outras coisas que você venerar vai te comer vivo.

Se você venera dinheiro e bens materiais, se é aí que você busca significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo, beleza e atração sexual e você sempre vai se sentir feio, e, quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. De certo modo, todo mundo já sabe disso – está codificado em mitos, provérbios, clichês, máximas, epigramas, parábolas; o esqueleto de toda boa história. O grande truque é conseguir manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas.

Quem venerar o poder vai acabar se sentindo fraco e amedrontado, e vai precisar de cada vez mais poder sobre os outros para conseguir afastar o próprio medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude sempre na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.

Essas formas de venerar são traiçoeiras não por serem malignas ou pecaminosas, mas por serem inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você se deixa levar gradualmente, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.”

[6] Não quero, com esses argumentos, defender que a ficção de terror seja a melhor ficção possível. Isso não faz sentido nenhum, já que não existe uma hierarquia entre gêneros na arte ou mesmo no entretenimento e que, para ser bem sincero, o conceito de “gênero” nem sequer faz tanto sentido para mim. O que pretendo de verdade, e que com boa vontade acredito ter conseguindo, é mostrar para aqueles que não gostam da ficção de terror (seja por ausência de uma inclinação natural ou pela vivência de repetidas experiências decepcionantes) que, apesar de seus receios, a ficção macabra é, acima de tudo, uma ficção necessária – além de frequentemente útil e terrificamente prazerosa para aqueles que dela desfrutam (e aqui eu não nego que exista um sadismo latente, escondido em algum calabouço mofado e gotejante dos labirintos da mente – mas, se até para nos alimentarmos costumamos destruir matéria orgânica de seres sencientes, em que faceta da existência humana não existe um sadismozinho inocente, hein?).

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