sexta-feira, 20 de abril de 2018

VERDADE, LOUCURA, IMAGINAÇÃO E CUBOS MÁGICOS


“Os que sonham de dia são conscientes de muitas coisas que escapam aos que sonham apenas à noite” – Edgar Allan Poe.
“A ficção é a verdade dentro da mentira” – Stephen King.
“A imaginação é mais importante do que o conhecimento” – Albert Einstein.
“Ser normal é a meta dos fracassados” – Carl Gustav Jung.

Ninguém consegue conhecer algo a fundo sem um pouco de loucura. É impossível entrar em contato com a essência de uma verdade sem um toque de imaginação e ousadia. Sempre é necessário desmontar a realidade e dela escapar para que se possa compreendê-la.

Façamos uma analogia com um brinquedo bastante famoso, o cubo de Rubik (também conhecido como cubo mágico). Como todo mundo que já viu um desses sabe, não há como descobrir sozinho as relações complexas e os princípios intrínsecos de um cubo mágico sem brincar com ele por algumas horas, mudando as peças de lugar e misturando as cores a esmo. Mas perceber essas relações e princípios é algo indispensável para que se consiga solucionar o puzzle e fazer o cubo voltar à configuração original, com cada face exibindo uma única cor. Ou seja, é só depois de embaralharmos, revirarmos, girarmos, mexermos e remexermos todas as linhas e colunas do cubo que, se tivermos uma boa imaginação espacial e certa dose de senso analítico, conseguiremos notar, pouco a pouco, as características ocultas que decorrem do mecanismo do brinquedo. E então, gradualmente, observando os padrões da permutação entre as cores, vamos compreendendo o exato funcionamento do cubo e percebendo que aquelas regras bizarras que determinam os giros e embaralhamentos não apenas fazem total sentido, mas que também não poderiam ser outras, pois são consequências naturais da existência do cubo tal qual foi inventado. Essa revelação progressiva de uma ordem invisível sob a aparência do caos faz com que vamos adquirindo um deslumbre crescente de pura apreciação estética em face das leis invariáveis que governam o cubo e que condicionam sua resolução. O mesmo se dá com quebra-cabeças, enigmas, jogos de lógica, poesias bem construídas,  músicas, mosaicos, equações, leis da física, teoremas matemáticos, obras de arte, etc. (os psicólogos denominam essa compreensão em forma de epifania de "gestalt").

É por isso que, em um sentido menos metafórico do que pode parecer, considero que a realidade é um grande puzzle de muitas dimensões. O mundo em que vivemos pode ser encarado como um quebra-cabeça de várias camadas. Ele é como um cubo mágico, só que mais complexo, pois engloba incontáveis elementos a mais. Assim como ocorre com o puzzle, do qual não extraímos informação alguma se o deixarmos parado, também estamos cegos para as verdades do mundo se não “brincarmos” um pouco com ele. Para compreender o mundo real, também precisamos embaralhá-lo. É preciso mover as engrenagens da existência para localizá-las e sentir suas saliências e reentrâncias. É necessário alterar a realidade de vez em quando para observá-la com maior sensatez. Aliás, é para isso que existem os mitos e a ficção – a projeção cifrada e duradoura das ideias e dos sentimentos humanos, transmissível de geração a geração e através de mares e continentes.

A ficção, colocando as aparências da realidade dentro de uma caixa e chacoalhando-a numa loucura aparentemente sem propósito, revela particularidades relevantes que estavam acobertadas pela roupagem ordinária com que as coisas se nos apresentam no dia-a-dia. Tecendo uma série de mentiras, a boa ficção sempre proporciona o vislumbre de uma verdade maior. Observe como a extravagância alegórica de um Laranja Mecânica, por exemplo, abre ensejo para que reflitamos sobre inúmeras questões mais ou menos atemporais de cunho filosófico, sociológico, moral e psicológico. Ou como o surrealismo de Dalí ou a imaginação abstrata de David Lynch têm mais a dizer sobre a psique humana do que boa parte dos quadros realistas, dos filmes sobre o cotidiano ou dos romances de costumes.

Vamos a um exemplo menos abstrato: em “A Igreja do Diabo”, Machado de Assis toma alguns minutos de liberdade imaginativa para virar de cabeça para baixo a história da religião católica, e, a partir daí, explorando um mundo fictício em que Satã em pessoa funda uma igreja na qual a maldade é idolatrada e a bondade é censurada, questiona o cerne de nossos moralismos e acaba descortinando mais sobre a natureza das virtudes e dos vícios humanos do que a maioria dos sermões católicos poderia fazer. Nesse caso, o caráter incomum da premissa da história de Machado de Assis é tão forte que anula as aparências cotidianas, fazendo com que olhemos diretamente para algo intangível, mas fundamental, que existe dentro da natureza humana. Uma causa secreta que condiciona a alma e dita nossas ações.

À semelhança do que fez Machado, André Azevedo da Fonseca, no conto “E o Diabo criou o homem” (disponível na Amazon pelo preço de um sorvete), inverte o mito da criação, brincando que foi o Diabo, e não Deus, o artesão responsável pelo surgimento da humanidade. O resultado dessa gênese especulativa – incrivelmente lúcida e divertida! – é não menos do que estarrecedor. E, sem que perceba ou despenda qualquer esforço, o leitor recebe uma epifania iluminadora capaz de fazê-lo repensar muitas de suas convicções e refletir sobre sua exata posição no universo.

É como disse David Foster Wallace: "a ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas, para ser realmente muito boa, ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele".

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