Tendo em vista o conteúdo forte,
violento, chocante e perturbador de alguns de meus contos reunidos no livro “A Caixa de Natasha e outras histórias de horror”, bem como o atordoante impacto que eles vêm
causando em leitores menos acostumados a esse intenso gênero de
literatura, senti-me na obrigação de dar algumas palavras explicativas a
respeito do assunto para esclarecer dúvidas e elidir apreensões criadas nas
mentes daqueles que temem pela minha sanidade mental e por suas próprias
seguranças.
Em primeiro lugar, eu não sou
meus personagens. Mesmo naqueles contos escritos em primeira pessoa em que o
narrador, atormentado e problemático, não revela seu nome, certamente ele não é
o mesmo sujeito que este que lhes escreve. Isso pode parecer extremamente óbvio
para quase todo mundo, mas existem pessoas que sentem uma enorme dificuldade em
assimilar esse princípio básico da criação literária, mesmo quando dizem para
si mesmas que o compreendem plenamente. Isso ocorre porque não estamos falando de
compreensão racional, mas de sentimentos dos quais somos totalmente inconscientes: trata-se de algo muito semelhante ao
que acontece com fãs de novelas televisivas que alegam assistir aos episódios
diários apenas para se divertir, mas que saem xingando e agredindo fisicamente o
ator que interpreta o vilão assim que o veem na rua.
Essa confusão é algo natural no
ser humano e faz parte da magia da ficção, mas deve ser muito bem compreendida
para não resultar em tragédias irreversíveis, embora facilmente evitáveis, que,
por isso mesmo, são tão lamentáveis. Os personagens – e mesmo os narradores –
são “máscaras e fantoches” que o autor usa para expressar algo, para criar um
pensamento no leitor ou simplesmente para poder contar uma boa história.
Dito isso, ainda resta a seguinte dúvida: será que não existem casos em que o narrador/personagem é tão semelhante ao autor,
em história de vida e em pensamentos, que essa linha divisória entre um e outro
vai ficando cada vez mais turva e esvaecida, a ponto de desaparecer ou ficar absolutamente
indistinguível? E a resposta não poderia ser outra: é claro que há! No entanto, mesmo nesses casos incomuns, narradores e
personagens são narradores e personagens. O autor é só uma força que lhes dá
vida. Contudo, podemos brincar com isso. Manipular expectativas e jogar com emoções. E essa é uma das graças da ficção e da
imaginação: nós deixamos a ilusão nos guiar.
Agora, aqui entre nós, tenho um
segredinho sujo para compartilhar com vocês: o que vocês diriam se, ao
contrário do que eu disse ali em cima, eu revelasse que, na verdade, TODOS os
meus personagens – mesmo aqueles mais abomináveis e perturbados – são, em
essência, eu mesmo? Vocês ficariam espantados? Chocados? Pois essa é a verdade. Acalme-se, acalme-se: até o fim do
texto você vai entender o que quero dizer e vai ver que eu não sou um maníaco
psicopata sedento por sangue, vísceras e corpos desmembrados.
Apesar de não fazer disso uma
regra, acredito que toda a ficção que crio é uma forma de explorar e simbolizar
eus-interiores e sensações
inomináveis que existem dentro de mim para que eu me conheça melhor e possa
expandir minha personalidade de uma forma mais consciente e sustentável. Escrever é, em síntese, uma forma de auto-descoberta e, consequentemente, de descoberta do mundo e do que há além do mundo. É uma exploração psíquica, intelectual, emocional e sensitiva. É nadar em mares profundos, captando manifestações sensoriais de toda sorte e organizando-as em palavras inteligíveis, sedutoras, para o leitor.
Mas, então, por que escolhi justamente o terror para essa viagem constante em minha vida? Por que decidi me valer de imagens e sensações aterrorizantes para guiar a interminável caminhada de fantasia e realidade que constitui a criação literária?
Essa pergunta me leva a pensar sobre o próprio motivo da existência da ficção de horror e sobre a importância das metáforas assustadoras não apenas no interior do texto, mas do próprio texto como uma metáfora para algo maior.
Mas, então, por que escolhi justamente o terror para essa viagem constante em minha vida? Por que decidi me valer de imagens e sensações aterrorizantes para guiar a interminável caminhada de fantasia e realidade que constitui a criação literária?
Essa pergunta me leva a pensar sobre o próprio motivo da existência da ficção de horror e sobre a importância das metáforas assustadoras não apenas no interior do texto, mas do próprio texto como uma metáfora para algo maior.
Ora, por que alguém vai querer
ler a respeito da desgraça do outro, conhecendo tormentos assombrosos e dores profundas em detalhes minuciosos? Por
que a penúria humana, na literatura, tem tanto impacto e representatividade?
Qual é o valor disso nas letras e nas artes em geral? Pois é aí que está a
chave do mistério, meu caro leitor, que muitas pessoas não sabem reconhecer.
Encontrá-la é descobrir um mundo novo e cheio de oportunidades maravilhosas.
Antes de pensamentos mais
aprofundados concernentes ao tema, é importante que tenhamos em mente a seguinte
proposição, da qual nenhum psicanalista jamais ousaria discordar: a violência
faz parte do ser humano e é uma de suas necessidades básicas, assim como comer,
respirar e amar. Dessa forma, é melhor que toda essa violência seja exercida no
terreno seguro da ficção, em livros, filmes e video-games, do que na delicada
organicidade da realidade, onde as consequências são severas e implacáveis.
Mais do que isso, a ficção de
terror/horror, além de servir como entretenimento e fuga da realidade que mexe
com nossos nervos e faz com que nos sintamos mais vivos, como verdadeiro
deleite animal similar àquele que experimentamos ao morder um suculento pedaço
de carne, tem um papel fundamental em nosso aprendizado, que é o de confrontar
o ser humano com seus medos, traumas e, principalmente, com todo o mal que há
dentro dele, esperando para sair da forma mais desastrosa possível. Eu
realmente tenho a séria convicção de que é só conhecendo a podridão e a
fraqueza que há dentro de nós que conseguimos nos libertar delas ou, pelo
menos, conviver com elas, aceitando-as e evitando que elas nos dominem.
Mais do que encontrar finais
felizes que nos deixem com a mente mais tranquila e relaxada, devemos saber
olhar para nossas trevas internas e para nossa ignorância, que é infinita, para
não permitir que elas nos devorem sem que percebamos e nos transformem nos
monstros que tanto abominamos. Como costumo repetir com frequência, “os
verdadeiros monstros não nos matam e aniquilam – eles se camuflam e, sorrateiramente, nos
transformam em monstros como eles”. Ou será que você realmente acha que alguém
pratica o mal deliberadamente, porque quer fazer o mal e pode escolher fazer o bem, sabendo
o que é o bem? Não estou dizendo que a maldade é, sempre, a ausência de
livre-arbítrio – só estou dizendo que o “diabo” (ou seja, nós mesmos) é
insidioso o suficiente para nos fazer acreditar que é prazeroso fazer o mal e que
ele não será revertido contra nós próprios, de uma forma ou de outra.
Apesar das aparências, não estou
querendo ser um moralista. Na verdade, passo muito longe disso, e considero até
que sou uma das pessoas mais amorais que existem. A moral pode ser uma
limitação perigosa, asquerosamente hipócrita e preconceituosa, e há inúmeras
questões em que conceitos como “bem” e “mal” simplesmente não são aplicáveis.
Mas, de vez em quando, precisamos colocar as coisas nesses termos para que
sejamos capazes de entender algumas “verdades” com maior facilidade.
Sabendo desses meus pontos de
vista, fica mais fácil compreender por que algumas de minhas histórias são tão
chocantes para muitas pessoas. Por isso mesmo, não escondo que muitas delas
podem perturbar o leitor de uma forma íntima e dilacerante – traumática,
até –, mas garanto que essa não é a minha intenção fundamental. Minha intenção
é sempre divertir o leitor com imaginação macabra e, quando possível,
mostrar-lhe, por meio de símbolos e alegorias, verdades que de outra forma
nunca seriam expostas.
Alguns de meus contos são simples
diversões despretensiosas, mas muitos deles são fábulas sobre nossa alma. Por
exemplo: boa parte dos contos fala, simbolicamente, sobre a autodestruição e a maneira obsessiva
com que as pessoas a procuram sem se dar conta disso, acreditando que o que fazem é o
propósito de suas vidas, e não a eliminação delas. Quantas vezes não vemos
alguém que amamos se afundando por contra própria em uma areia movediça da
qual logo não haverá mais escapatória? Quantas vezes não vemos pessoas adoradas
cavando a própria cova sem que possamos fazer qualquer coisa para salvá-las? O
nome do que espero estar fazendo na minha ficção é “profilaxia”. Procure no
dicionário. Vale a pena.
A verdade é que, quando nos
perdemos de nós mesmos, procuramos nos destruir, pois já não nos reconhecemos
mais no espelho de nossa própria mente, e o reflexo que vemos nos causa asco. É
por isso que uma pessoa que tem medo de altura, se chegar a níveis extremos de
dor e desespero, fatalmente se jogará de um precipício. Quem tinha medo de
objetos cortantes, flagela-se com o estilete mais afiado que vê pela frente,
alucinando-se com o débil prazer que acompanha a dor. No dia-a-dia, “pulamos do
precipício” e “nos flagelamos” de formas muito mais sutis, só que
perigosíssimas. Comemos sem parar para afastar o vazio na alma quando sabemos
que estamos obesos. Entregamo-nos resignadamente à preguiça do sofá ao invés de
nos divertir ou nos exercitar, porque a diversão parece só existir para os
outros e os exercícios nos parecem demorados e inúteis demais. Jogamos e
apostamos mais do que temos, como um substituto pobre para os objetivos
genuínos que devem fazer parte de nossa rotina. Bebemos, fumamos e usamos
medicamentos e drogas para acender a adrenalina que já não encontramos mais em
outros lugares ou para acalmar nossos nervos, dos quais já não temos mais
controle. Todos esses comportamentos são válvulas de escape aparentemente inofensivas,
mas também são suicídios em parcelas. É como tomar veneno com um conta-gotas.
Mudanças também costumam ser
dolorosas, mesmo quando vêm para o nosso bem. É difícil lidar com elas. Temos
de deixar para trás muita coisa e conviver com novidades desconhecidas que nos
amedrontam. Mas essa é a única forma que temos de continuar vivendo e sendo nós
mesmos, evoluindo para não morrer. O Desconhecido nos assusta e nos fascina de
modos estranhos. É a condição primordial para a existência.
A ficção de terror, nesse
contexto, serve como um alerta para sabermos olhar para o que há em nosso
interior. No escuro da nossa alma, vagueando sem rumo nas trevas do nosso
coração, há criaturas grotescas feitas de ódio, raiva, dores, frustrações,
arrependimentos, traumas, vergonhas, preconceitos, humilhações e perspectivas
nunca alcançadas. Temos de encontrar esses monstros asquerosos e pegá-los no
colo para afagá-los, dar-lhes carinho e uma mão amiga cheia de compreensão que
faça com que eles não cresçam e se tornem maiores do que nós mesmos. Temos de
aconchegá-los em nosso peito com redenção verdadeira, colocá-los juntos de nosso
lado bom e transformá-los em superação e aprendizagem. Eles não vão
desaparecer, mas serão domesticados. E podem até se tornar nossos amigos.
O terror pode não nos dar alívio
imediato, mas ele é capaz de nos mostrar onde está o problema e de encontrar um
caminho iluminado de ida e volta em meio à escuridão – basta termos a coragem e
a força necessárias para percorrê-los.
E quem disse que não podemos
enfeitar esse caminho com muita imaginação e fazer dele um lugar sinistramente
agradável para caminhar?
E também podemos usar a ficção de horror para extravasar toda a violência e crueldade que há dentro da gente sem pôr em
risco a vida de ninguém! É mais seguro do que tirar rachas bêbado ou arranjar
brigas em bares. Ou torturar alguém até a morte com uma machadinha... ;)
Nós não seríamos capazes de fazer mal nem a uma mosca, não é verdade? |
Interessante a sua visão de narrador-personagem e a do escrever como um modo de "expansão da personalidade"; os pensamentos sobre o receptor da mensagem (no seu caso, os contos de terror hahah) são algo que também influencia também, não?
ResponderExcluirO receptor da mensagem (ou a projeção mental idealizada que o autor faz dele) influencia, e muito, tanto na forma quanto no conteúdo dos contos, com certeza, mesmo quando essa idealização seja predominantemente inconsciente. E o leitor, ao entrar em contato com o texto, reconstrói mais uma vez o significado daquelas palavras, frases e parágrafos (o que chamamos de interpretação - e que é um processo tão subjetivo, imprevisível e de difícil controle quanto a própria noção que as pessoas fazem da realidade).
ResponderExcluirPretendo (por influência sua, hahahahaha) fazer um texto mais pormenorizado sobre o assunto para postar aqui no blog mais para frente. Vamos conversando e trocando ideias, sempre que possível. Dessa forma o texto ficará muito mais enriquecido. :D
Creio que seus esclarecimentos são bem pertinentes. Infelizmente, as pessoas não sabem fazer certas diferenciações.
ResponderExcluirGraças a Deus, não faço parte desse grupo de seres humanos. Eu acho que você tem cara de bonzinho, rs...