terça-feira, 23 de junho de 2015

AS DELÍCIAS DO TERROR E AS TREVAS DO CORAÇÃO

Tendo em vista o conteúdo forte, violento, chocante e perturbador de alguns de meus contos reunidos no livro “A Caixa de Natasha e outras histórias de horror”, bem como o atordoante impacto que eles vêm causando em leitores menos acostumados a esse intenso gênero de literatura, senti-me na obrigação de dar algumas palavras explicativas a respeito do assunto para esclarecer dúvidas e elidir apreensões criadas nas mentes daqueles que temem pela minha sanidade mental e por suas próprias seguranças.

Em primeiro lugar, eu não sou meus personagens. Mesmo naqueles contos escritos em primeira pessoa em que o narrador, atormentado e problemático, não revela seu nome, certamente ele não é o mesmo sujeito que este que lhes escreve. Isso pode parecer extremamente óbvio para quase todo mundo, mas existem pessoas que sentem uma enorme dificuldade em assimilar esse princípio básico da criação literária, mesmo quando dizem para si mesmas que o compreendem plenamente. Isso ocorre porque não estamos falando de compreensão racional, mas de sentimentos dos quais somos totalmente inconscientes: trata-se de algo muito semelhante ao que acontece com fãs de novelas televisivas que alegam assistir aos episódios diários apenas para se divertir, mas que saem xingando e agredindo fisicamente o ator que interpreta o vilão assim que o veem na rua.

Essa confusão é algo natural no ser humano e faz parte da magia da ficção, mas deve ser muito bem compreendida para não resultar em tragédias irreversíveis, embora facilmente evitáveis, que, por isso mesmo, são tão lamentáveis. Os personagens – e mesmo os narradores – são “máscaras e fantoches” que o autor usa para expressar algo, para criar um pensamento no leitor ou simplesmente para poder contar uma boa história.

Dito isso, ainda resta a seguinte dúvida: será que não existem casos em que o narrador/personagem é tão semelhante ao autor, em história de vida e em pensamentos, que essa linha divisória entre um e outro vai ficando cada vez mais turva e esvaecida, a ponto de desaparecer ou ficar absolutamente indistinguível? E a resposta não poderia ser outra: é claro que há! No entanto, mesmo nesses casos incomuns, narradores e personagens são narradores e personagens. O autor é só uma força que lhes dá vida. Contudo, podemos brincar com isso. Manipular expectativas e jogar com emoções. E essa é uma das graças da ficção e da imaginação: nós deixamos a ilusão nos guiar.

Agora, aqui entre nós, tenho um segredinho sujo para compartilhar com vocês: o que vocês diriam se, ao contrário do que eu disse ali em cima, eu revelasse que, na verdade, TODOS os meus personagens – mesmo aqueles mais abomináveis e perturbados – são, em essência, eu mesmo? Vocês ficariam espantados? Chocados? Pois essa é a verdade. Acalme-se, acalme-se: até o fim do texto você vai entender o que quero dizer e vai ver que eu não sou um maníaco psicopata sedento por sangue, vísceras e corpos desmembrados.

Apesar de não fazer disso uma regra, acredito que toda a ficção que crio é uma forma de explorar e simbolizar eus-interiores e sensações inomináveis que existem dentro de mim para que eu me conheça melhor e possa expandir minha personalidade de uma forma mais consciente e sustentável. Escrever é, em síntese, uma forma de auto-descoberta e, consequentemente, de descoberta do mundo e do que há além do mundo. É uma exploração psíquica, intelectual, emocional e sensitiva. É nadar em mares profundos, captando manifestações sensoriais de toda sorte e organizando-as em palavras inteligíveis, sedutoras, para o leitor.

Mas, então, por que escolhi justamente o terror para essa viagem constante em minha vida? Por que decidi me valer de imagens e sensações aterrorizantes para guiar a interminável caminhada de fantasia e realidade que constitui a criação literária?

Essa pergunta me leva a pensar sobre o próprio motivo da existência da ficção de horror e sobre a importância das metáforas assustadoras não apenas no interior do texto, mas do próprio texto como uma metáfora para algo maior.

Ora, por que alguém vai querer ler a respeito da desgraça do outro, conhecendo tormentos assombrosos e dores profundas em detalhes minuciosos? Por que a penúria humana, na literatura, tem tanto impacto e representatividade? Qual é o valor disso nas letras e nas artes em geral? Pois é aí que está a chave do mistério, meu caro leitor, que muitas pessoas não sabem reconhecer. Encontrá-la é descobrir um mundo novo e cheio de oportunidades maravilhosas.

Antes de pensamentos mais aprofundados concernentes ao tema, é importante que tenhamos em mente a seguinte proposição, da qual nenhum psicanalista jamais ousaria discordar: a violência faz parte do ser humano e é uma de suas necessidades básicas, assim como comer, respirar e amar. Dessa forma, é melhor que toda essa violência seja exercida no terreno seguro da ficção, em livros, filmes e video-games, do que na delicada organicidade da realidade, onde as consequências são severas e implacáveis.

Mais do que isso, a ficção de terror/horror, além de servir como entretenimento e fuga da realidade que mexe com nossos nervos e faz com que nos sintamos mais vivos, como verdadeiro deleite animal similar àquele que experimentamos ao morder um suculento pedaço de carne, tem um papel fundamental em nosso aprendizado, que é o de confrontar o ser humano com seus medos, traumas e, principalmente, com todo o mal que há dentro dele, esperando para sair da forma mais desastrosa possível. Eu realmente tenho a séria convicção de que é só conhecendo a podridão e a fraqueza que há dentro de nós que conseguimos nos libertar delas ou, pelo menos, conviver com elas, aceitando-as e evitando que elas nos dominem.

Quem assiste a O Exorcista pode ver apenas um show de horrores com uma menina possuída que vomita coisas verdes e roda a cabeça 360 graus. Mas, com um pouco mais de perspicácia, também pode encontrar a eterna luta entre o bem e o mal simbolizando uma família sendo assolada por uma doença inexplicável, pela tensão conflituosa entre parentes e até mesmo pelas mudanças e instabilidades da pré-adolescência.
Mais do que encontrar finais felizes que nos deixem com a mente mais tranquila e relaxada, devemos saber olhar para nossas trevas internas e para nossa ignorância, que é infinita, para não permitir que elas nos devorem sem que percebamos e nos transformem nos monstros que tanto abominamos. Como costumo repetir com frequência, “os verdadeiros monstros não nos matam e aniquilam – eles se camuflam e, sorrateiramente, nos transformam em monstros como eles”. Ou será que você realmente acha que alguém pratica o mal deliberadamente, porque quer fazer o mal e pode escolher fazer o bem, sabendo o que é o bem? Não estou dizendo que a maldade é, sempre, a ausência de livre-arbítrio – só estou dizendo que o “diabo” (ou seja, nós mesmos) é insidioso o suficiente para nos fazer acreditar que é prazeroso fazer o mal e que ele não será revertido contra nós próprios, de uma forma ou de outra.

Apesar das aparências, não estou querendo ser um moralista. Na verdade, passo muito longe disso, e considero até que sou uma das pessoas mais amorais que existem. A moral pode ser uma limitação perigosa, asquerosamente hipócrita e preconceituosa, e há inúmeras questões em que conceitos como “bem” e “mal” simplesmente não são aplicáveis. Mas, de vez em quando, precisamos colocar as coisas nesses termos para que sejamos capazes de entender algumas “verdades” com maior facilidade.

Sabendo desses meus pontos de vista, fica mais fácil compreender por que algumas de minhas histórias são tão chocantes para muitas pessoas. Por isso mesmo, não escondo que muitas delas podem perturbar o leitor de uma forma íntima e dilacerante – traumática, até –, mas garanto que essa não é a minha intenção fundamental. Minha intenção é sempre divertir o leitor com imaginação macabra e, quando possível, mostrar-lhe, por meio de símbolos e alegorias, verdades que de outra forma nunca seriam expostas.

Alguns de meus contos são simples diversões despretensiosas, mas muitos deles são fábulas sobre nossa alma. Por exemplo: boa parte dos contos fala, simbolicamente, sobre a autodestruição e a maneira obsessiva com que as pessoas a procuram sem se dar conta disso, acreditando que o que fazem é o propósito de suas vidas, e não a eliminação delas. Quantas vezes não vemos alguém que amamos se afundando por contra própria em uma areia movediça da qual logo não haverá mais escapatória? Quantas vezes não vemos pessoas adoradas cavando a própria cova sem que possamos fazer qualquer coisa para salvá-las? O nome do que espero estar fazendo na minha ficção é “profilaxia”. Procure no dicionário. Vale a pena.

A verdade é que, quando nos perdemos de nós mesmos, procuramos nos destruir, pois já não nos reconhecemos mais no espelho de nossa própria mente, e o reflexo que vemos nos causa asco. É por isso que uma pessoa que tem medo de altura, se chegar a níveis extremos de dor e desespero, fatalmente se jogará de um precipício. Quem tinha medo de objetos cortantes, flagela-se com o estilete mais afiado que vê pela frente, alucinando-se com o débil prazer que acompanha a dor. No dia-a-dia, “pulamos do precipício” e “nos flagelamos” de formas muito mais sutis, só que perigosíssimas. Comemos sem parar para afastar o vazio na alma quando sabemos que estamos obesos. Entregamo-nos resignadamente à preguiça do sofá ao invés de nos divertir ou nos exercitar, porque a diversão parece só existir para os outros e os exercícios nos parecem demorados e inúteis demais. Jogamos e apostamos mais do que temos, como um substituto pobre para os objetivos genuínos que devem fazer parte de nossa rotina. Bebemos, fumamos e usamos medicamentos e drogas para acender a adrenalina que já não encontramos mais em outros lugares ou para acalmar nossos nervos, dos quais já não temos mais controle. Todos esses comportamentos são válvulas de escape aparentemente inofensivas, mas também são suicídios em parcelas. É como tomar veneno com um conta-gotas.

Mudanças também costumam ser dolorosas, mesmo quando vêm para o nosso bem. É difícil lidar com elas. Temos de deixar para trás muita coisa e conviver com novidades desconhecidas que nos amedrontam. Mas essa é a única forma que temos de continuar vivendo e sendo nós mesmos, evoluindo para não morrer. O Desconhecido nos assusta e nos fascina de modos estranhos. É a condição primordial para a existência.

A ficção de terror, nesse contexto, serve como um alerta para sabermos olhar para o que há em nosso interior. No escuro da nossa alma, vagueando sem rumo nas trevas do nosso coração, há criaturas grotescas feitas de ódio, raiva, dores, frustrações, arrependimentos, traumas, vergonhas, preconceitos, humilhações e perspectivas nunca alcançadas. Temos de encontrar esses monstros asquerosos e pegá-los no colo para afagá-los, dar-lhes carinho e uma mão amiga cheia de compreensão que faça com que eles não cresçam e se tornem maiores do que nós mesmos. Temos de aconchegá-los em nosso peito com redenção verdadeira, colocá-los juntos de nosso lado bom e transformá-los em superação e aprendizagem. Eles não vão desaparecer, mas serão domesticados. E podem até se tornar nossos amigos.

O terror pode não nos dar alívio imediato, mas ele é capaz de nos mostrar onde está o problema e de encontrar um caminho iluminado de ida e volta em meio à escuridão – basta termos a coragem e a força necessárias para percorrê-los.

E quem disse que não podemos enfeitar esse caminho com muita imaginação e fazer dele um lugar sinistramente agradável para caminhar?

E também podemos usar a ficção de horror para extravasar toda a violência e crueldade que há dentro da gente sem pôr em risco a vida de ninguém! É mais seguro do que tirar rachas bêbado ou arranjar brigas em bares. Ou torturar alguém até a morte com uma machadinha... ;)
Nós não seríamos capazes de fazer mal nem a uma mosca, não é verdade?

3 comentários:

  1. Interessante a sua visão de narrador-personagem e a do escrever como um modo de "expansão da personalidade"; os pensamentos sobre o receptor da mensagem (no seu caso, os contos de terror hahah) são algo que também influencia também, não?

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  2. O receptor da mensagem (ou a projeção mental idealizada que o autor faz dele) influencia, e muito, tanto na forma quanto no conteúdo dos contos, com certeza, mesmo quando essa idealização seja predominantemente inconsciente. E o leitor, ao entrar em contato com o texto, reconstrói mais uma vez o significado daquelas palavras, frases e parágrafos (o que chamamos de interpretação - e que é um processo tão subjetivo, imprevisível e de difícil controle quanto a própria noção que as pessoas fazem da realidade).

    Pretendo (por influência sua, hahahahaha) fazer um texto mais pormenorizado sobre o assunto para postar aqui no blog mais para frente. Vamos conversando e trocando ideias, sempre que possível. Dessa forma o texto ficará muito mais enriquecido. :D

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  3. Creio que seus esclarecimentos são bem pertinentes. Infelizmente, as pessoas não sabem fazer certas diferenciações.
    Graças a Deus, não faço parte desse grupo de seres humanos. Eu acho que você tem cara de bonzinho, rs...

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