quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O HORROR... O HORROR...

Por que gostamos tanto do horror ficcional? Por que, em aparente contradição total com nossas pretensões e vontades conscientes, deleitamo-nos tão intensamente com a presença do Desconhecido, das sombras e penumbras e das perturbadoras insinuações do Mal e do Grotesco que se escondem nos covis ocultos em que secreta e perversamente desejamos adentrar, supostamente apenas por curiosidade? Será que é porque queremos conhecer coisas novas ou porque, muito intimamente, identificamo-nos com as obscuridades e bizarrices da fantasia e do próprio mundo que nos cerca? Por que, afinal, entramos em estranho êxtase ao ver o vampiro que dilacera violentamente a garganta de uma vítima inocente, o zumbi putrefato que, cambaleante, levanta-se de sua decomposição aquosa para devorar viva a presa humana, o maníaco que persegue a garota indefesa, o psicopata que tortura homens com requintes do mais engenhoso sadismo, a bruxa que voa aos pavorosos risos pela assustadora noite de lua cheia, o monstro de formas grotescas que repugna o mais corajoso dos homens, o fantasma espectral que vagueia lamurioso pelos corredores escuros, arrastando as correntes e os grilhões de sua eterna danação, o louco que alucina com formas e sons que não podem ser compreendidos, o enterrado vivo, o emparedado, o demônio de chifres retorcidos e cascos arqueados, o borbulhante sangue vividamente vermelho, as tripas estraçalhadas, os ossos expostos, os crânios abertos, os porões sem luz, as teias de aranha, as portas e janelas que batem sozinhas, as práticas execráveis da magia negra, do vodu e da macumba, a degradação dos valores, a corrupção da inocência, os sussurros, as trevas, os gritos e gemidos, os raios e trovões, as névoas, as fantasmagorias e tudo o que há de mais horrendo e assombroso na imaginação humana, cheia de sórdido sadismo e pungente masoquismo?

Metáforas de nossos reais sofrimentos e inconfessáveis desejos?

Por que gostamos tanto do horror ficcional? Gostamos do horror na ficção porque ele nos alivia, mesmo que apenas temporariamente, de nossos verdadeiros horrores: aqueles, como a doença, a morte, a velhice e a solidão, que não têm graça, que não são divertidos nem de se imaginar; aqueles que preferimos manter não apenas na escuridão, mas na Escuridão Distante, afastados o máximo possível de nossas existências, ainda que saibamos que eles existem em algum lugar, talvez mais próximos do que possamos imaginar. Mas não queremos – nem sequer conseguimos! – considerar seriamente a ideia de suas existências sem cair em completo desespero. Por isso, então, a ficção. Por isso o horror fantástico. Por isso o bicho-papão da criança medrosa: símbolos e alegorias para podermos pensar o impensável, para imaginar o inimaginável, para compreender o que ainda não é compreensível.
"Filmes de horror não criam o medo. Eles o libertam"  Wes Craven, criador das séries "Pânico" e "A Hora do Pesadelo". Wes Craven também disse, sobre os filmes de terror, que "eles são como campos de treinamento para a psique. Na vida real, os seres humanos são embalados na mais fina embalagem, ameaçados por perigos reais e, muitas vezes, horríveis, como no caso de Columbine. Mas a forma narrativa coloca esses medos em séries de eventos que são palpáveis, manejáveis. Ela nos proporciona uma maneira de pensar racionalmente sobre nossos medos".
Ademais, não são nossas próprias reações fisiológicas frente ao horror na ficção exageradamente semelhantes às de uma arrebatadora paixão? O pulsar frenético do coração, o tremor desenfreado dos nervos, o frio na espinha, o arrepio na pele: tudo isso é tão parecido com os sentimentos do primeiro amor! A violência das emoções incontroláveis que nos dominam durante o pavor, assim como no auge das paixões mais avassaladoras, faz com que nos sintamos mais vivos e próximos de nossa verdadeira essência, livrando-nos, com a pureza sinistra da fantasia, do tédio inevitável das coisas mundanas e cotidianas para (quem sabe?) destruir as más influências, inerentes à alma humana, da intemperança, da irritabilidade, da falta de significado da vida e das insidiosas questões existenciais que frequentemente assolam nossa tranquilidade de espírito.

O horror na ficção – seja na literatura, na música, na poesia, no cinema ou em qualquer outra manifestação da arte humana – faz com que entremos em contato direto com as sensações mais primitivas, quase esquecidas, de nossas origens ancestrais, de nossos antepassados remotos, e, também, com as mais profundas e intensas fantasias da infância. Faz, ainda, com que vislumbremos, pela imaginação e mesmo pelo intelecto, as múltiplas e multiformes possibilidades para o futuro. Além disso, é o horror que nos proporciona a experiência dos sentimentos mais sublimes, pois é somente frente ao horror que se descobre o amor sincero, a amizade verdadeira e o afeto puro e simples. São nos momentos de terror que aprendemos o real valor do companheirismo, da solidariedade, da amizade e da fé – fé no que quer quer seja: em Deus, na Cabala, na humanidade ou até em si mesmo.

É das garras afiadas da fera assassina que nos persegue, sob o estridente grito de horror que evidencia toda a maldade dos seres e o inescapável Mal da realidade, que surge aquela chama invisível e ubíqua que acende em nossas almas a vontade de viver e a elas revela a eterna possibilidade do recomeço, a esperança e toda a pureza que ainda resta em nossos corações dilacerados e endurecidos pela implacabilidade da realidade.

Aliás, é o lobo mau, e não a vovozinha, que faz seu coração tremer, não é verdade?
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O texto acima é originário de uma publicação que eu fiz há alguns anos no facebook a respeito da importância da ficção de horror em nossas vidas. Sobre o mesmo assunto, há um artigo mais pormenorizado, aqui no blog, mas com uma abordagem um pouco diferente, que vale a pena ser lido. O artigo em questão se chama "As delícias do terror e as trevas do coração" e pode ser lido neste link.

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