Por que gostamos tanto do horror ficcional? Por que, em
aparente contradição total com nossas pretensões e vontades conscientes,
deleitamo-nos tão intensamente com a presença do Desconhecido, das sombras e
penumbras e das perturbadoras insinuações do Mal e do Grotesco que se escondem
nos covis ocultos em que secreta e perversamente desejamos adentrar,
supostamente apenas por curiosidade? Será que é porque queremos conhecer
coisas novas ou porque, muito intimamente, identificamo-nos com as obscuridades
e bizarrices da fantasia e do próprio mundo que nos cerca? Por que, afinal,
entramos em estranho êxtase ao ver o vampiro que dilacera violentamente a
garganta de uma vítima inocente, o zumbi putrefato que, cambaleante, levanta-se
de sua decomposição aquosa para devorar viva a presa humana, o maníaco que
persegue a garota indefesa, o psicopata que tortura homens com requintes do mais engenhoso sadismo,
a bruxa que voa aos pavorosos risos pela assustadora noite de lua cheia, o
monstro de formas grotescas que repugna o mais corajoso dos homens, o fantasma
espectral que vagueia lamurioso pelos corredores escuros, arrastando as
correntes e os grilhões de sua eterna danação, o louco que alucina com formas e
sons que não podem ser compreendidos, o enterrado vivo, o emparedado, o demônio
de chifres retorcidos e cascos arqueados, o borbulhante sangue vividamente
vermelho, as tripas estraçalhadas, os ossos expostos, os crânios abertos, os porões sem luz, as teias de aranha, as portas e janelas que
batem sozinhas, as práticas execráveis da magia negra, do vodu e da macumba, a
degradação dos valores, a corrupção da inocência, os sussurros, as trevas, os
gritos e gemidos, os raios e trovões, as névoas, as fantasmagorias e tudo o que há de mais horrendo e assombroso
na imaginação humana, cheia de sórdido sadismo e pungente masoquismo?
Metáforas de nossos
reais sofrimentos e inconfessáveis desejos?
Por que gostamos tanto do horror ficcional? Gostamos do
horror na ficção porque ele nos alivia, mesmo que apenas temporariamente, de
nossos verdadeiros horrores: aqueles, como a doença, a morte, a velhice e a
solidão, que não têm graça, que não são divertidos nem de se imaginar; aqueles
que preferimos manter não apenas na escuridão, mas na Escuridão Distante,
afastados o máximo possível de nossas existências, ainda que saibamos que eles
existem em algum lugar, talvez mais próximos do que possamos imaginar. Mas não
queremos – nem sequer conseguimos! – considerar seriamente a ideia de suas
existências sem cair em completo desespero. Por isso, então, a ficção. Por isso
o horror fantástico. Por isso o bicho-papão da criança medrosa: símbolos e alegorias para podermos
pensar o impensável, para imaginar o inimaginável, para compreender o que ainda
não é compreensível.
"Filmes de horror não criam o medo. Eles o libertam" – Wes Craven, criador das séries "Pânico" e "A Hora do Pesadelo". Wes Craven também disse, sobre os filmes de terror, que "eles são como campos de treinamento para a psique. Na vida real, os seres humanos são embalados na mais fina embalagem, ameaçados por perigos reais e, muitas vezes, horríveis, como no caso de Columbine. Mas a forma narrativa coloca esses medos em séries de eventos que são palpáveis, manejáveis. Ela nos proporciona uma maneira de pensar racionalmente sobre nossos medos". |
Ademais, não são nossas próprias reações fisiológicas
frente ao horror na ficção exageradamente semelhantes às de uma arrebatadora paixão?
O pulsar frenético do coração, o tremor desenfreado dos nervos, o frio na
espinha, o arrepio na pele: tudo isso é
tão parecido com os sentimentos do primeiro amor! A violência das emoções incontroláveis
que nos dominam durante o pavor, assim como no auge das paixões mais avassaladoras,
faz com que nos sintamos mais vivos e próximos de nossa verdadeira essência,
livrando-nos, com a pureza sinistra da fantasia, do tédio inevitável das coisas
mundanas e cotidianas para (quem sabe?) destruir as más influências, inerentes
à alma humana, da intemperança, da irritabilidade, da falta de significado da
vida e das insidiosas questões existenciais que frequentemente assolam nossa
tranquilidade de espírito.
O horror na ficção – seja na literatura, na música, na
poesia, no cinema ou em qualquer outra manifestação da arte humana – faz com
que entremos em contato direto com as sensações mais primitivas, quase
esquecidas, de nossas origens ancestrais, de nossos antepassados remotos, e,
também, com as mais profundas e intensas fantasias da infância. Faz, ainda, com
que vislumbremos, pela imaginação e mesmo pelo intelecto, as múltiplas e
multiformes possibilidades para o futuro. Além disso, é o horror que nos
proporciona a experiência dos sentimentos mais sublimes, pois é somente frente
ao horror que se descobre o amor sincero, a amizade verdadeira e o afeto puro e
simples. São nos momentos de terror que aprendemos o real valor do companheirismo,
da solidariedade, da amizade e da fé – fé no que quer quer seja: em Deus, na Cabala, na humanidade ou até em si mesmo.
É das garras afiadas da fera assassina que nos persegue, sob
o estridente grito de horror que evidencia toda a maldade dos seres e o
inescapável Mal da realidade, que surge aquela chama invisível e ubíqua que acende
em nossas almas a vontade de viver e a elas revela a eterna possibilidade do
recomeço, a esperança e toda a pureza que ainda resta em nossos corações
dilacerados e endurecidos pela implacabilidade da realidade.
***
O texto acima é originário de uma publicação que eu fiz há alguns anos no facebook a respeito da importância da ficção de horror em nossas vidas. Sobre o mesmo assunto, há um artigo mais pormenorizado, aqui no blog, mas com uma abordagem um pouco diferente, que vale a pena ser lido. O artigo em questão se chama "As delícias do terror e as trevas do coração" e pode ser lido neste link.
Nenhum comentário:
Postar um comentário