terça-feira, 1 de setembro de 2015

Rápidas considerações a respeito de traduções de poemas

Recentemente, eu trouxe aqui no blog uma tradução que fiz de “The Lighthouse”, o misterioso conto que Edgar Allan Poe nunca chegou a terminar. Além dessa tradução, também publiquei aqui uma matéria com algumas considerações importantes a respeito de traduções de obras literárias, evidenciando, ainda que em curtas linhas, as principais dificuldades que envolvem o trabalho do tradutor e o quanto tal trabalho influencia em nossas leituras diárias e na própria construção da conjuntura literária, cultural e até social de nosso país.

Com essa despretensiosa incursão pelo vasto universo das traduções, interessei-me também pelas complexidades e belezas da tradução de poemas – possivelmente o ramo da arte tradutória que mais exige atenção, sensibilidade, paciência e predisposição criativa do tradutor.  Se, na tradução de textos acadêmicos, científicos, ou mesmo de obras literárias em prosa, o tradutor pode se reservar a certo conforto técnico para vertê-los à Língua Portuguesa dando especial atenção à literalidade da palavras – ou seja, aos seus significados “ao pé da letra”, à exatidão objetiva, ainda que relativa –, em detrimento à forma e à sonoridade, na adaptação de poemas, no entanto, o problema muda de figura. Questões de métrica, rima, sons e ritmo, inexistentes ou secundárias na prosa, assumem importâncias maiores na poesia, e, nelas, nem sempre (ou quase nunca) é a literalidade das palavras o que realmente conta. São outros os elementos que a guiam.

Já citei, em outra publicação aquino blog, a sugestiva frase de Robert Frost que diz que “poesia é tudo aquilo que se perde com a tradução”. De fato, expressar em uma língua, com exatidão, aquilo que foi dito poeticamente em outra é tarefa ingrata que nenhum tradutor deve ter a pretensão de realizar (mesmo porque é impossível), mas uma adaptação que, em algum sentido específico, se aproxime do poema original – e, preferencialmente, seja o mais fiel possível às características essenciais dos versos tais quais foram concebidos –, isso sim é possível e pode servir de base para construções muito interessantes e enriquecedoras, tanto para o tradutor quanto para o leitor e, mais amplamente, para a Literatura de uma forma geral.
No posfácio da brilhante tradução brasileira, em versos rimados, da clássica peça “Fausto”, de J. W. Goethe, feita por Sílvio Meira, este nos diz que:

“Traduzir o poema dramático ‘Fausto’ de Johann Wolfgang Goethe, diretamente do original alemão, não constitui tarefa simples. Mas é tentadora como escalar uma grande montanha. Há perigos de toda sorte e as paisagens que se descortinam são inesquecíveis. Torna-se necessário parar muitas vezes e inundar os olhos e a alma.

Numerosos óbices surgem a cada passo e podem resumir-se em três categorias: a) a difícil apreensão do exato pensamento do poeta, de conteúdo filosófico e em certos passos nebuloso; b) o sentido da linguagem usada, em alemão clássico, com expressões já transfiguradas pelo tempo; c) o ajustamento à métrica e às rimas, no vernáculo português.”
Essas palavras de Silvio Meira já nos dão uma boa noção de quão complexa é a adaptação entre línguas de poemas, mas, para trazer exemplos mais palpáveis, menciono os comentários feitos pelo lexicógrafo, filólogo, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-ministro da cultura Antônio Houaiss sobre a excelente tradução de Ivo Barroso para os sonetos de Shakespeare. Segue o que ele analisa a respeito do primeiro verso do Soneto XII:

“When I do count the clock that tells the time

Literalmente, seria algo como:

Quando eu conto mesmo o relógio que diz o tempo

Nessa pseudotradução, em que se perderiam, logo de início, metro e ritmo (...), perder-se-ia, em seguida, aquele ‘count’ que repercute em ‘clock’, que, gerando um l, ressoa em ‘tells’, como se perderia toda uma série de dentais, oclusivas, aspiradas, surdas, sonoras: ‘do’, ‘count’, ‘the’, ‘that’, ‘tells’, ‘the’, ‘time’, vivência do tique-taque jâmbico do relógio. Quando se vê tudo isso (e deve-se estar vendo apenas parte do todo) e se vê a solução de Ivo Barroso – numa lição de dialética do senhor e do escravo, que impõe, sendo imposto, que subordina, subordinando-se, que escraviza, escravizando-se –, vê-se que ela atingiu o cerne da expressão shakespeariana:

Quando a hora dobra em triste e tardo toque

Aí estão, refeitos compensatoriamente, a oclusiva gutural surda (‘quando’, ‘toque’), a vibrante sucedânea da lateral original (‘hora’, ‘dobra’, ‘triste’, ‘tardo’) e a dental, alternada em sonoras e surdas – fundamental, no verso, porque em Shakespeare como em Ivo Barroso, fonte da ‘harmonia imitativa’ com o inglês tick-tack (já de 1549) e o português tique-taque, onomatopeico para o bater do relógio – ‘quando’, ‘dobra’, ‘triste’, ‘tardo’, ‘toque’.”
Como se nota, traduções bem feitas podem alterar materialmente todo o corpo dos poemas, mas algo do “espírito” deles permanece. Nos poemas, o estilo criativo do tradutor transparece com maior evidência. Neles, o tradutor também deve ser verdadeiro poeta e ter a sensibilidade de extrair a essência da beleza volúvel da poesia e transferi-la, a seu modo – mas com respeito ao modo do poeta original –, em palavras e sons do seu vernáculo.

Foi com respeito e amor pelo original, bem como com interesse em compreender as peculiaridades da tradução de versos, que eu adaptei para o Português o poema “Eldorado”, de Edgar Allan Poe (disponível neste link).

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