terça-feira, 7 de junho de 2016

Por que nunca publiquei um romance?


"[Como se em uma luta de boxe], o romance vence sempre por somatório de pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute"  Julio Cortázar.

Costumam me perguntar, com alguma frequência, por que eu prefiro escrever contos, e não romances, que são mais vendáveis e agradam um público maior. Adoro romances e encontro grande prazer neles, mas, com sinceridade, respondo que, muito embora seja bem provável que eu ainda venha a escrever algum romance – um romance estranho e verdadeiramente perturbador, é claro –, minha real paixão são os contos. Contos são estilosos, sucintos e diretos. Contos são afiados e certeiros. Contos são o murro no crânio que Kafka exigia; talvez até uma marretada violenta contra a banalização e a mecanização, sobretudo a banalização e a mecanização que existem dentro da literatura (em especial nos romances feitos por equipes treinadas, e não por escritores apaixonados).

Como uma pessoa obstinada e que sabe o que quer, contos – pelo menos os bons – não precisam de floreios e volteios artificiais que só servem para agradar olhos alheios e apaziguar o vazio na existência que existe em algumas almas. Contos são enérgicos, independentes e autossuficientes. Contos têm personalidade forte, e aqueles que são realmente bons transcendem as páginas e se tornam preciosidades raras e refinadas: joias mágicas, inigualáveis – não estéreis produtos mercantilizados.

Existem livros que são cuidadosamente moldados, seguindo fórmulas pré-definidas e friamente analisadas, para agradar um nicho do mercado e, com isso, arrecadar milhões (nesses casos, o "autor" não passa de um rótulo). Muitos best-sellers norte-americanos são fabricados dessa maneira, feitos por técnicos instruídos para escrever seguindo um padrão previamente estabelecido. O fato é que, apesar de esse processo de criação ser no mínimo censurável, o resultado acaba sendo extremamente satisfatório para o leitor, de modo que dificilmente algum escritor, sozinho, é capaz de superar o entretenimento imediato proporcionado por esse tipo de livro. Contudo, como contos, em regra, não são rentáveis, eles não costumam ser submetidos a essa desonestidade artística e, portanto, desenvolvem-se de maneira livre e autêntica: tornam-se maravilhas ou aberrações, mas sempre de modo legítimo e honesto.

A meu ver, a honestidade – melhor dizendo, a auto-honestidade  é uma característica indispensável ao contista.

Aliás, ouso afirmar que nem sei se eu gosto de literatura apenas por gostar de literatura: acredito que não sou propriamente um amante das páginas, mas das preciosidades raras e mágicas de um modo geral, de sorte que fui levado a gostar de literatura apenas porque muitas dessas preciosidades se encontram apenas nela, na boa literatura.

Enfim, eu poderia dar mil motivos sobre o porquê de eu gostar tanto de escrever (e ler) contos, mas eu nunca seria tão claro quanto foi Jorge Luis Borges, que, em uma entrevista de 1985, disse o seguinte quando lhe questionaram o motivo de ele nunca ter escrito um romance:

Para escrever romances, é preciso ser leitor de romances, e li poucos romances em minha vida. Creio que é impossível escrever um romance sem palavrório. No entanto, li e reli Dom Quixote. E depois, se tivesse que nomear um romancista, seria Conrad; em seus romances há algo épico que não encontrei em outros autores. E depois Dickens. Fracassei em muitos romances famosos; tratei de ler Guerra e Paz, Crime e Castigo, que me emocionaram muitíssimo, mas fracassei com Flaubert, Sartre, enfim, tantos. Ao contrário, creio que o conto pode ser algo essencial, pode ser legislado pelo autor. Um autor pode ter em sua mente todo um conto, mas não um romance, porque este se escreve e se lê sucessivamente. O romance é algo que apenas podemos divisar de longe. Por isso creio que é impossível um romance sem palavrório, mas um bom conto – um conto de Kipling, por exemplo –, pode não conter nenhum palavrório, que eu saiba. Eu não escrevi romances, porque para mim – eu... eu sou um homem tímido – entrar em um romance é como entrar em um casa com cem pessoas; sinto-me um pouco tonto, um pouco perdido, e logo tenho que conhecê-las, tenho que averiguar quem são, tenho que saber os parentescos, as relações que têm... tudo isso me dá muito trabalho. Ao contrário, o poema ou o conto se oferecem imediatamente e não exigem esforço”.

Com a exceção de que eu nunca li Dom Quixote, faço minhas as palavras do grande autor de O Aleph e A Biblioteca de Babel.

2 comentários:

  1. Perfeito o seu pensamento Gustavo. Concordo com o que você diz, que quando bem feito o conto torna-se uma jóia rara e sempre lembrada pela sua preciosidade. No caso do romance, a base de um romance é sempre a mesma, não importa se seja meloso, hot, adolescente, infantil, sobrenatural, enfim, sabemos claramente o que irá acontecer em um opusculo que tem como tema principal o romance. Por mais que não queiramos a leitura acaba se tornando mais do mesmo. Adorei o seu ponto se vista. Forte abraço!

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  2. É bem por aí, Luciano. Outro dia, numa livraria, peguei ao acaso um romance policial para dar uma folheada (gosto muito de romances policiais, mesmo dos mais simples). O livro que escolhi é muito bom, e de uma escritora bem famosa. No entanto, ao ler as primeiras páginas, já encontrei "mais do mesmo": o policial "fodão", a parceira divertida, o ajudante cômico, o mistério tradicional, a estrutura padrão, os mesmo jogos de linguagem, as mesmas metáforas, o mesmo ritmo e sempre aquele estilo - eficiente, mas manjado ao extremo - que parece dizer "eu fiz curso de escrita criativa e segui à risca as lições aprendidas". O livro cumpre com sua função de divertir e entreter (o que não deve nunca ser subestimado, já que, normalmente, a principal função de um romance é, sim, entreter), mas sei que esse livro não vai ficar gravado na minha memória por muito tempo...

    Claro que nem todos os romances são assim. Há, mesmo nos romances, grandes preciosidades que não podem ser esquecidas: Laranja Mecânica, Coração das Trevas, Dom Casmurro, Crime e Castigo, etc. (para citar apenas alguns dos que eu já li e que lembro de cabeça, e só nos restringindo aos já consagrados como clássicos). Mas há, hoje, inclusive, gente muito boa fazendo trabalhos admiráveis e inovadores nos romances. O legal é que a criatividade humana, em conjunto com a diferença entre os escritores e até com as preferências diversas dos leitores, faz com que obras geniais sejam produzidas nos mais diferentes formatos, enriquecendo nosso patrimônio cultural – que, para nossa felicidade, é aberto e cheio de pluralidades: há para todos os gostos.

    Eu talvez contribua com um grão de areia na vasta praia dos contos. Outros contribuem com litros d'água no oceano dos romances. E sabe-se lá quantas possibilidades mais não existem por aí! O importante é buscar a beleza!

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