quinta-feira, 1 de junho de 2017

RESENHA: Na Escuridão da Mente, de Paul Tremblay


Em 2015, Na Escuridão da Mente foi o vencedor do Bram Stoker Award, a maior premiação internacional para livros de terror. E não é para menos: o livro, mais do que apenas assustador (o que ele de fato é, e muito!), traz uma história de suspense psicológico que respeita e instiga a inteligência do leitor. Uma história com muitas camadas e subtextos sutis, mas eficientes, que dão uma profundidade sempre crescente à obra, fazendo com que nos deparemos com novas interpretações toda vez que rememoramos essa ou aquela cena específica, ou mesmo o livro como um todo. É, em suma, uma obra imprescindível para o terror contemporâneo; o livro que faltava para galgarmos mais um degrau na escada da evolução literária do terror feito com comprometimento e seriedade.

A trama principal é simples: uma menina problemática que pode ou não estar possuída por alguma entidade demoníaca será tratada ou pela medicina tradicional ou pelos ritos de um exorcismo. Clichê? Sem dúvida. Mas essa é a ideia mesmo: brincar com os clichês para renová-los. E a história é só um ponto de partida para algo maior.

Em essência, o livro de Tremblay é uma releitura mais moderna (e em alguns pontos menos ingênua) de O Exorcista. Porém, não se trata de uma releitura qualquer: trata-se de uma releitura consciente de si mesma e da tradição na qual se insere, uma releitura metalinguística que a todo momento critica – mas sem deixar de respeitar e admirar – essa mesma tradição. Escondidos em meio a cada parágrafo, referências óbvias e não tão óbvias assim à cultura macabra jorram sobre os olhos do leitor, a princípio apenas como parte de uma história cativante e bem contada. Na sequência, contudo, percebermos que nada naquela história ocorreu por mero acaso e que os lugares-comuns típicos do gênero serão magistralmente examinados, revirados e reinterpretados – e isso sem prejudicar em nada, antes incrementar, a tensão construída página-a-página, parágrafo-a-parágrafo.
Na Escuridão da Mente é releitura atualizada – e surpreendente – das histórias sobre possessão demoníaca que vieram à tona a partir de O Exorcista.
Se durante o livro todo ficamos com a sensação estranha, tão incômoda quanto satisfatória, de estar vasculhado com um olhar renovado um local já bem conhecido, mas que ainda encerra mistérios, isso se dá porque a ambiência de Na Escuridão da Mente não é tão só uma casa qualquer assombrada por forças malignas: ela é a casa de O Exorcista, o hotel de O Iluminado, a mansão de Assombração na Casa da Colina, a residência de Amityville, o apartamento de Rosemary e todos os demais quartos escuros e corredores penumbrosos que alimentam nossos pesadelos há séculos. Pois esse é o universo do livro: o imaginário inextinguível construído pelos clássicos do medo e do mistério.

As referências contidas nessa surpreendente experiência auto-reflexiva, exuberantes em intertextualidades perfeitamente convenientes, vão desde os já mencionados clássicos inquestionáveis até obras mais recentes, mas igualmente poderosas, como o inovador House of Leaves, de Mark Z. Danielewski. Nesse caminho sombrio, o autor também percorre, com igual entusiasmo e senso crítico, boa parte da cultura pop dos livros e filmes  assustadores mais famosos das últimas quatro décadas, com menções diretas e indiretas a A Bruxa de Blair, O Exorcismo de Emily RoseAtividade Paranormal e Invocação do Mal, entre tantos outros, e também obras clássicas não tão populares, como O Papel de Parede Amarelo, de Charlotte Perkins Gilman.
House of Leaves (inédito no Brasil) é outro livro fundamental do terror contemporâneo que foi referenciado na obra de Paul Tremblay.
Mais ainda, Na Escuridão da Mente se apropria dessa miscelânea sombria e a atualiza com a devida sensatez, inserindo questões contemporâneas concernentes a assuntos como: tecnologia, internet, redes sociais, feminismo, economia, psicanálise, exploração midiática de catástrofes, falibilidade do american way of life, decadência do patriarcado e mudanças de paradigma diversas. Para não perder a abordagem tradicional, inquietações filosóficas do tipo ciência X religião, racionalidade X fé, pragmatismo X simbolismo também são tangenciadas pelas imersivas páginas de Paul Tremblay.

Some tudo isso a uma escrita primorosa caracterizada por permanente fluidez, personagens interessantes com os quais nos identificamos de imediato e terror, muito terror da melhor qualidade, e você terá Na Escuridão da Mente, essa maravilha imperdível para fãs e não-fãs de terror cujo título original é bem mais sugestivo e significativo do que o escolhido para a edição brasileira: A Head Full of Ghosts ("uma cabeça cheia de fantasmas").

William Peter Blatty e companhia devem ter ficado orgulhosos.

5 comentários:

  1. Preciso ler essa obra Gustavo! Fico a imaginar essa obra, e meus devaneios vão à lugares inimagináveis que minha mente permite ir. Muito boa a sua resenha Gustavo, você soube nos situar magistralmente o que o leitor encontrará na obra. O house of leaves também deve ser maravilhosamente perturbador. Pena que não foi lançado no Brasil, ainda, ou será que não será lançado por aqui? Um abração!

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    1. É um livro excelente, Luciano! Leia assim que possível. Além de tudo o que eu mencionei na resenha, o livro é divertidíssimo e super agradável de se ler. Eu, que sou um leitor lento, cheguei à última página em menos de 3 dias.

      Acredito que o House of Leaves não será lançado no Brasil, pelo menos não por enquanto. O livro é bastante extenso e peculiar. Traduzi-lo e reeditá-lo por aqui seria um trabalho dificílimo que, considerando o mercado brasileiro, talvez não valha a pena, sob o ponto de vista econômico.

      Esse House of Leaves é bem estranho. Várias páginas foram diagramadas de uma forma bizarra, com parágrafos de ponta cabeça, páginas em branco, palavras escritas na diagonal, trechos riscados, algumas frases fora de contexto ou ininteligíveis e coisas estranhas assim. Tudo isso para embaralhar a mente do leitor e fazê-lo adentrar no universo desnorteante em que vivem os personagens do livro.

      Dê uma olhada nessas imagens para ter uma ideia de como ele é: https://goo.gl/HqnXjC

      Apesar do preço elevado, a curiosidade foi forte demais e eu acabei comprando a edição original do livro (tive de conter outros gastos por algumas semanas, mas valeu a pena, hahahahaha). A edição em si é assustadora! Um volume grosso, de mais de mil páginas, com várias esquisitices no interior. A história não é tão sensacional a princípio, mas a experiência diferenciada que o livro proporciona, com seus labirintos de palavras, é uma loucura vertiginosa!

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    2. Será que vale a pena fazer uma matéria sobre o House of Leaves aqui no blog?

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  2. Se for possível, faça-o Gustavo. Eu adoraria ler uma matéria de House of leaves aqui no blog, escrita por ti. Acredito que outras pessoas que acompanham o seu blog também ficariam extasiadas com a matéria. Esse livro me parece muito interessante, de fato é uma pena não traduzi-lo aqui no Brasil. Mas você disse que não resistiu e comprou o seu exemplar, eu te entendo perfeitamente. Em seu lugar eu teria feito a mesma coisa, ou seja, teria o comprado. Parabéns pela sua aquisição dessa obra bem sinistra. Um abração!

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    1. Sobrando um tempinho eu faço a matéria, aí posto algumas fotos e curiosidades sobre o House of Leaves.

      Se eu tivesse bastante tempo disponível e se meu inglês fosse um pouco melhor, eu queria muito eu mesmo traduzir esse livro!

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