terça-feira, 29 de maio de 2018

CONTO: Medo do Escuro


Há muitos anos, numa tarde chuvosa em que eu estava no escritório do meu pai, aguardando-o para ir para casa, encontrei uma velha máquina de escrever esquecida em um canto mal-iluminado de uma sala pouco utilizada. Na época eu nem sonhava em publicar ou sequer escrever um livro, mas já arriscava alguns parágrafos macabros por pura diversão e, o que é mais importante, já tinha ouvido histórias de terror em quantidade suficiente para saber que aquela máquina de escrever, ali, sozinha em cima de uma mesa empoeirada que ninguém utilizava, não poderia ser simples coincidência sem significado, mas, sim, um convite irrecusável do destino.

Uma força desconhecida se apoderou de mim e comecei a escrever uma história de terror inventada na hora – palavra após palavra, parágrafo após parágrafo, seguindo a intuição, um vaga ideia da estrutura na cabeça e muita vontade de registrar aquelas sensações obscuras e misteriosas que viviam no meu peito, tão íntimas para mim, mas tão distantes das pessoas que me cercavam... Sensações que eram mais do que sensações, sensações que eram universos inteiros, universos internos sombrios, mas maravilhosos, sinistros, mas sublimes, universos com que eu sempre estive tão familiarizado desde criança, mas que não conseguia compartilhar com ninguém, nem com os meus melhores amigos.

Naquela tarde chuvosa, no escritório, esquecendo-me de que o mundo real continuava a existir a uma sala de distância, com pessoas trabalhando preenchendo planilhas, elaborando holerites, confeccionando notas, organizando arquivos e fazendo todas aquelas coisas de gente adulta que me pareciam tão chatas e que eu, na adolescência, mal sabia o que eram ou para que serviam, mergulhei fundo no meu distorcido universo particular e, tec-tec-tec, martelando as teclas duras da velha máquina de escrever cujas letras às vezes falhavam e na qual o papel insistia em ficar inclinado, esbocei um conto de terror, muito baseado nas minhas próprias experiências assustadoras de anos antes, quando eu era vítima da minha própria imaginação tétrica, sobre uma garotinho que, em seu quarto praticamente sem luz, começa a imaginar que aquilo que ele entrevê em meio às sombras e silhuetas da escuridão não são apenas os contornos da mobília do quarto, mas algo mais...

Depois de pronto o rascunho, fiz algumas alterações à caneta e considerei o trabalho encerrado. O conto se chamava "Medo do Escuro", e, apesar de naquele dia eu ter ficado super entusiasmado e muito satisfeito com o resultado, anos depois eu já havia praticamente me esquecido dele e pensava que nunca mais o veria de novo. Até que...

Até que, poucos dias atrás, encontrei as folhas em que eu havia escrito o conto, perfeitamente dobradas e com as letras fora de prumo, umas fortes demais e outras parecendo fantasmas de letras, de tão apagadas, dentro de uma antiga edição de IT - A Coisa, do Stephen King (aquela que vinha em dois volumes de capa dura, com o palhaço parecendo um boneco de cera e na qual o Pennywise era chamado de "Parcimonioso").

Fiquei emocionado e, ressalvados vários detalhes do texto (incluindo a gramática, que foi o único aspecto que eu corrigi antes de publicar aqui), um tanto surpreso com a qualidade da história. O conto não é nenhuma obra-prima, devemos reconhecer isso antes de criar qualquer expectativa, mas, considerando que veio de um moleque imaturo de 15 ou 16 anos que não devia ter lido nem vinte livros durante a vida toda (e isso considerando os livrinhos da Chapeuzinho-Vermelho e dos Três Porquinhos da época da pré-escola), esse tal de "Medo do Escuro" até que tem os seus méritos como uma expressão literária incipiente das típicas agonias que todo mundo já deve ter experimentado quando, ainda na infância, se tinha que dormir sozinho em um quarto com a porta entreaberta e os pais distantes: um medo bobo, sem motivo, mas que, justamente por isso (e também pelo fato de ser um dos primeiros), talvez seja um dos medos mais intensos que as pessoas em geral sintam na pele durante toda a vida: o medo criado e alimentado pela própria imaginação quando se está sozinho no escuro, esse medo ilusório que, às vezes, se torna tão... tão real!
***

MEDO DO ESCURO
“Quando se olha por muito tempo para dentro do abismo, o abismo também olha para dentro de ti” – Friedrich Nietzsche.
Estava tão escuro que o pequeno Felipe mal era capaz de ver os contornos dos móveis do quarto. Ele apenas conseguia divisar vultos esmaecidos que, apesar de ele saber que eram dos móveis, insistiam em insinuar-lhe coisas más e sobrenaturais.

No começo, foi apenas uma brincadeira: "eu sei que aquilo é a lateral do armário, com um cabide e uma roupa pendurada", dizia para si mesmo, "mas, ali na penumbra cerrada, não se parece demais com uma mulher de cabelo negro, escorrido, usando um longo vestido branco?". Embora ainda em tom de brincadeira, mas com a escuridão parecendo se solidificar ao redor de seu corpo, os vultos assumindo formas mais estranhas e menos difusas, a ideia ganhou substância: "aquilo ali poderia ser o vestido; aquela parte, o cabelo; e aquela outra – meu Deus! – um olho esbugalhado que me observa sem piscar! O que será que ela está fazendo ali, flutuando sozinha no canto mais sombrio do quarto?".

O tom de brincadeira na mente de Felipe foi ficando cada vez mais alucinado, cheio de uma inquietação nervosa de fazer o corpo tremer e a pele pinicar com arrepios que não se sabe de onde vinham. Encoberta pela negritude do quarto, a imagem – já não se sabe se imaginária ou real – ia se tornando pavorosa em sua natureza de pesadelo adentrando na realidade, de ameaça insidiosa se solidificando no mundo real, de espírito ou demônio invadindo um ambiente que deveria ser apenas de diversão, descanso e tranquilidade. Embora obscurecida pela densa cortina de sombras, estava evidente que a presença não convidada era maligna, e que, para não ser descoberta, esperaria no escuro o tempo que fosse necessário, para só então atacar. Sem que fosse possível determinar o momento exato em que a temperatura passou a cair, o quarto ficou muito mais frio do que antes, tão frio que seria possível ver vapor escapando das narinas, se as luzes estivessem acesas. Lá no canto, além da escuridão, Felipe podia sentir a presença inumana, vinda de fora do mundo dos vivos, e conseguia até sentir o cheiro da perversidade e da podridão pestilenta que emanava dos anseios de mortos que querem companhia.

Acima do zumbido persistente da madrugada malsinada, ruídos e estalidos eriçavam os minúsculos pelos do frágil corpo de Felipe. A profundidade da escuridão lhe causava vertigens como se ele estivesse à beira de um abismo prestes a devorar-lhe a alma. “A mulher morta... ela está olhando para mim... eu sei que ela está olhando para mim... Ela só vai embora quando tiver minha alma para si... Ela só está esperando eu parar de olhar para ela por um segundo... Ela só está esperando isso para arrancar minha alma de mim e arrastá-la para os tormentos intermináveis que me aguardam no lugar de onde ela surgiu... Eu queria me proteger, me esconder debaixo das cobertas e ficar assim até o dia amanhecer, mas é isso o que ela está esperando para me atacar, talvez para arrancar meus olhos e minha língua e deixar meu corpo sangrando, se debatendo, sem poder gritar, enquanto carrega minha alma para o abismo... Eu não posso me esconder debaixo das cobertas! Não posso! Tenho que lutar contra isso! Mas está tão frio, e eu estou com tanto medo...”.

O olho esbugalhado da presença maligna encarava Felipe, e Felipe era obrigado a encarar o olho esbugalhado. As negras asas do terror se abriam como se pertencessem a um morcego monstruoso e engolfavam o rosto do garoto, envolvendo-lhe a cabeça e prendendo-se com firmeza atrás da nuca, deixando-o completamente imobilizado para sugar-lhe sangue e alma até a última gota. A terrível espera sem fim sufocava-o nas trevas de um pavor que ele não mais conseguia suportar, e a escuridão invadia-se para dentro dele. "Ela vai me pegar, eu sei que ela vai me pegar! Quando eu estiver menos esperando, ela vai se mover dali, vai vir correndo e gritando na minha direção como se estivesse possuída pelo próprio diabo, e então vai fazer coisas horríveis comigo. Sinto que ela vai agarrar meu tornozelo com mãos tão frias que chegam a queimar e vai me arrastar para o túmulo com ela. E então ficaremos lá, presos para sempre: ela, morta, e eu, vivo, debatendo-me, gritando, gemendo e rangendo os dentes, no escuro, dentro do caixão, onde ninguém poderá ouvir meus pedidos de ajuda e meus gritos de desespero. Ficarei sozinho com um cadáver e ninguém vai ver minhas lágrimas de horror! A escuridão vai ser tão grande que a única coisa que eu vou conseguir ver será o olho ainda esbugalhado da morta ao meu lado. A escuridão vai ser tão grande quanto esta aqui do quarto e... Oh, meu Deus! E se eu já estiver enterrado vivo sem saber? Não consigo ver nada aqui! Como posso saber se ainda estou no meu quarto se não enxergo coisa alguma?”.

E, então, Felipe poderia dizer a si mesmo que aquilo era tudo invenção da sua cabeça, que nada daquilo era real, que ele estava seguro, na cama, apenas com medo de ficar sozinho no escuro, e que, por isso, estava tremendo, suando frio e respirando com dificuldade. Mas já era tarde demais. Ele havia atingido o ponto sem retorno. A mulher-fantasma de cabelos pretos e vestido branco, o caixão lacrado e o enterro prematuro eram, todos, fatos inquestionáveis; eram todos reais... Tão reais quanto o pavor que prendia sua alma na escuridão e imobilizava seu corpo para sempre aterrado.

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