sábado, 9 de novembro de 2019

CONTO: VAMPYR – A história sem verbos de uma eterna existência sem vida


O conto que segue abaixo, extremamente incomum, foi escrito de acordo com as severas regras da chamada “escrita constrangida”. A escrita constrangida é uma técnica literária (ou, para dizer com maior acuidade: um desafio literário) em que o autor, voluntariamente, impõe limites rígidos e bem definidos ao seu trabalho de criação, autoproibindo-se de certos recursos triviais. Exemplos de escrita constrangida são: compor uma história sem utilizar nenhuma palavra que contenha a letra “e” ou uma fábula em que cada frase comece e termine sempre com as mesmas expressões. No caso de “Vampyr”, o autor, para adentrar com profundidade léxico-semântica e até espírito-existencial no universo do vampiro, optou por se privar de todas aquelas palavras que, consideradas núcleo essencial de uma frase, expressam movimento, ação, reação, processo, estado ou fenômeno da natureza: os verbos.

Adianto que é um conto difícil. E cheio de segredos...


Para saber um pouco mais sobre a escrita constrangida, clique aqui ou pesquise sobre Georges Perec e o OuLiPo.


VAMPYR – A história sem verbos de uma eterna existência sem vida
Autor: Melvin Menoviks

Às dezoito horas, os sinos alegres. Início do crepúsculo. Céu ainda azul; nuvens brancas, uma atrás da outra, em caminho do campo florido a oeste. Um incêndio insipiente, exuberante, na imensidão anil do firmamento celeste. Esplêndidos raios vermelho-incandescentes no majestoso contraste de cores do poente. Um ocaso suntuoso, aprazível, quase sublime, de luminescente lusco-fusco índigo-carmim ao escurecer de evanescente colorido plúmbeo-vermelhusco. A emergente brisa fresca no controle dos movimentos suaves das copas das árvores e da relva verde espraiada além da cidade. Felicidade e certa nostalgia vagamente melancólica nos espíritos das pessoas; harmonia para os seres viventes. 

Às dezenove horas, os sinos agourentos. Noite crescente. Um diáfano lençol de penumbra sobre a cidade. Torres e prédios cinzentos divisáveis nas frinchas do tetro manto de nuvens ambulantes. No limiar semidistinguível entre o céu e o vulto das colinas à distância, o clarão póstumo do sol finado em brilhos mortiços de brasa sob borralho, de vermelhidão vulcânica sob rochas ígneas, basálticas, cor-de-alcatrão. Presságios ruins, embora de origem inexplicável, permeados à perfumada atmosfera noturna. 

Às vinte horas, os sinos lamuriosos. Um aposento esquecido e empoeirado no alto do campanário. Sozinho no quarto escuro, o vampiro. Solidão em todo o diminuto cubículo: no chão rangente, nas paredes desbotadas, nas quinas sombrias, no teto trincado, nas janelas vergadas pela umidade e fendidas por vendavais inclementes, agora trespassadas por sinistros feixes da espectral luminosidade do luar; acima de tudo, a solidão – a imensa solidão, um vazio absoluto – dentro do coração da criatura da noite. Um vazio transbordante. Uma ausência sem fim. Uma vida-morte: o morto-vivo. 

Às vinte e uma horas, os sinos ecoantes. Borrões de cerração ao redor da lua refulgente. O vampiro, tão solitário quanto a eternidade, fraco e neurastênico como um cadáver recém-despertado – a própria aberração herética, hedionda, nefasta e nefanda da solipsa existência vampírica – em seu recôndito covil na catedral em ruínas. Em seus pulmões, nenhum ar. Em suas veias, nenhuma gota de sangue. Ainda assim, vida em seu corpo (mas não em seu espírito). Nada de compreensão para o vampiro. Sua inerente condição de defunto-acordado: uma incógnita, um mistério maior do que a vida e maior do que a morte, posto que mescla anômala das duas. A eternidade: mistério ainda maior. 

Às vinte e duas horas, os sinos retumbantes. Escuridão noturna completa. Fraqueza profunda no lânguido corpo do monstro fotofóbico. Hemicrania intensa. Ausência de seiva vital. Aparência física: a de uma carcaça mumificada: resto humanoide mórbido, macilento, escalvado, alquebrado, nu, estiolado, medonho-cadavérico; pele branco-verde-cinza-descolorada, algo que musgosa, com contornos salientes da angulosa conjuntura óssea, abarrotada de nódulos, gânglios, caroços pustulentos, proeminências antinaturais e formações esqueléticas desconjuntadas. Face: como que d'O Grito, do Munch, mas seca, entenebrecida, perturbadoramente sem cor e completamente sem expressão – a face pavorosa de um torturado em decomposição. Contudo, para o vampiro, nada de aniquilamento. A morte, mesmo a desejada autodestruição (o tão-sonhado autocídio libertador): impossível. A vida? Idem. Morto-vivo: o mesmo que vivo-morto. Vida eterna: igual morte dissimulada. O vampiro, visível mas não-visto qual a sombra de uma sombra, no aguardo do momento oportuno para um ataque – ataque, este, já sem significado para ele, mas ainda assim necessário, indispensável para a recuperação de suas energias, para a retroalimentação de seu intra-purgatório particular. 

Às vinte e três horas, os sinos famintos. Trevas revoltosas no domo de negras nuvens espiraladas. Fora do campanário – morada mofada do vampiro; seu covil úmido e frio – lá na rua, sob a série de postes de luz amarelada, agasalhada, maçãs do rosto enrubessalpicadas, a garota, tão jovem, em andanças notívagas de desilusão de paixão. Sonhos, desejos, expectativas e – sim! – amor (amor maltratado, não-valorizado, mas, mesmo assim: amor, inesgotável amor!) em seu peito despedaçado, em suas singelas esperanças de mulher-menina, na rosa ternamente viçosa de sua juventude embelezada: amor. Na catedral obscura, dentro do insuspeito campanário, o monstro. A janela, agora, aberta. Lá em cima: o luar. Lá embaixo: jugular. 

À meia-noite, os sinos cruéis. Vibrações da noite malsinada. O vampiro, em dores e contorções, não mais homem: morcego, num instante. Quiróptero aberrante, rato-voador negrejante, hematófago gigante. Através da névoa gélida, sua malignidade deslizante. No passeio ladeado por árvores frondosas – um cipreste ao fim da andança –, passos e mais passos da inocente garota (quase uma criança). Em seus olhos, lágrimas de amor não correspondido. Mão na bolsa. No puxador do zíper. O pequeno espelhinho de maquiagem. Seus olhos, de fato, marejados. O reflexo da garota no espelho. Atrás dela, no reflexo, nem sinal do bicho sorrateiro. Mas, na espreita, sensores atentos, biossonares aguçados, orientado às cegas por um fluxo incessante de ecos e sonidos de um caleidoscópio de ondas sonoras, o Desmodus rotundus em planação, incisivos foiciformes prontos para a dilaceração. Depois, em voo obtuso, o nosferático ser abstruso, portador da praga do não-vivo, porém não-morto, de repente, em aterrissagem, rente ao pescoço. Negras e fétidas asas membranosas ao redor do aterrado rosto da garota. Os incisivos afiados em ruptura do frágil tecido vascular. Jorros constantes, incoaguláveis, de fresco sangue-vida, morno, vermelhíssimo: um banquete deleitoso para sorvos sôfregos, desenfreados. Odor ferrugento, pêlo ensopado, respingos a metros de distância. Espasmódica e exaurida de vigor, a garota em resfriamento. O calor de volta ao anônimo senhor da escuridão. 

Na madrugada, o sino exasperado. Ruídos, chiados e guinchos de êxtase em rasgos na pós-noite de maligno breu libertador. Excitado, alucinado, o vampiro em nova transmutação: de repelente rato voador a grotesco canino hirsuto. Animal selvagem, em uivos espavoridos, mais do que lascivos, em arrebatamento vulpino, frenesi descontrolado de matilha ensandecida de um lobo só. O bicho, meio esfarrapado, meio derrengado, mas exaltado feito esquizoide sob descarga de adrenalina, de olhos injetados e boca sanguíneo-salivante, em correria frenética no retorno ao antro de repouso e proteção contra o luzidio astro-rei já prenunciado. 

Na antemanhã, o sino em lúgubres responsos. Inaudíveis badalares na noite esmorecida. O vampiro, de homem a morcego voraz, de morcego a figura licantrópica, de afoito licantropo a diáfana neblina difusa, agora tornado homem de novo, solitário, mas saciado, isolado no campanário sem luz. O vampiro de volta à residência degringolada. De volta ao ataúde. De volta ao limo e ao bolor. Um espírito perpetuamente definhante em sucessivos espasmos existenciais. 

Das seis às dezoito horas, o silêncio do sepulcro. Sono do morto. Descanso do que não precisa descansar. Sonhos febris. Pesadelos inesconjuráveis. Demônios, fantasmas, avejões, avantesmas, miríades abracadabrantes de vapores alquímicos. Uivos das bruxas dos salgueiros dos cemitérios. Gemidos de megeras incorpóreas. Íncubos e súcubos nas legiões de Satã. Hordas terrífico-flamejantes de antiquerubins metamórficos, aleijados, diabólico-deformados, de gargalhadas ciclo-giro-ecoantes, multi-turbilhonantes, provindas das entranhas adoecidas do metaonírico-Além-trovejante. Labaredas lamuriantes. Visagens de necrodulia. Pesadelos tomados por infestações de larváticos seres em infinda saprofagia. Berne espiritual, bigatos agitados, parasitas suprafísicos descontrolados. Hediondez arrasadora. Brumas etéreo-bruxuleantes de perversos-funestos-sádicos-sabáticos sonhos mefistofélicos oriundos da pútrida quintessência malévolo-perturbadora. Então, tudo de novo, cíclica-infinitamente. A morte-vivente. O festim de sangue. O vazio inescapável. O fastio da vida. A voragem da morte. O silêncio da noite unânime. A escuridão ad eternum. A perene treva nihilificante. O oblívio materializado. – O vampiro.

2 comentários:

  1. Vampyr não aquele jogo de terror? https://www.google.com/search?q=VAMPYR&oq=VAMPYR&aqs=chrome..69i57j69i60&sourceid=chrome&ie=UTF-8

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  2. Muito bom, Melvin. Li o seu livro e tenho acompanhado seu blog. Percebi pelas postagens que parece ter evoluído muito na escrita, mas não encontro mais material inédito seu para ser vendido em formato impresso. Esse conto experimental é um exemplo de sua evolução. Meio difícil de entender no início, mas exatamente essa torrente de termos é que dá um efeito incrível.

    Para ser sincero, não suporto ler Poe, Lovecraft e escritores que adjetivam demais, mas não sei por que e apesar disso, gostei bastante do teu livro e das postagens no blog.

    Continue firme e grande abraço.

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