quarta-feira, 7 de novembro de 2018

AQUI É SEMPRE NOITE


Escrevendo já há alguns anos e sendo leitor há tantos mais, desenvolvi a convicção de que, para além de mero entretenimento, livros realmente relevantes são aqueles capazes de exercer uma função como que de um Robin Hood espiritual: para mim, literatura de verdade é aquela que perturba o acomodado e tranquiliza o inquieto. Arte literária pra valer é aquela que tira as pessoas comuns de suas zonas de conforto e leva um pouco de paz para aqueles que, perdidos ou afastados de seus caminhos, sobrevivem em guerra cega contra tudo e contra todos, em especial contra si mesmos.
Muito com base nesse pressuposto, sinto intensamente que uma parcela significativa da minha missão enquanto escritor é dar voz e servir de companheirismo para os derrotados, para os fracos, os esquisitos, os desajustados, as minorias. Não me refiro àquelas minorias socioeconômicas que vemos se digladiando em debates políticos e cujos componentes se juntam em movimentos com bandeiras e metas em comum. Esses grupos, por mais que oprimidos, já têm sua voz, sua força e sua representatividade social, de modo que, bem ou mal, estão trilhando suas justas cruzadas pelos seus próprios meios. Quando menciono as minorias, refiro-me àqueles que vivem nas sombras de verdade, que sofrem na escuridão, sem escudos nem espadas, isolados e esquecidos, com dores ignoradas ou até menosprezadas pelos demais.
Minhas histórias macabras e personagens bizarras são para os que passam a vida em confronto ininterrupto contra a infecta fuligem da realidade. Escrevo para aquela garota que não se adéqua às turmas da escola e que, sem ninguém saber, chora escondida no banheiro numa constante flagelação em busca da própria personalidade. Escrevo para aquele cara estranho cuja inteligência, muito abaixo ou muito acima da média, o impossibilita de viver em comunidade; para aquele rapaz de sensibilidade anomalamente aguçada cujas necessidades especiais não são compreendidas pelos familiares ou reconhecidas pelos colegas. Escrevo para os prodígios que, inobstante seus elevados talentos, percebem que são irrelevantes, insignificantes, invisíveis ou até indesejados no meio em que vivem; para os desassossegados que se reviram todas as noites em terríveis sonhos febris; para o homem quase ordinário que, ainda que sem padecer de defeitos aparentes, por um motivo oculto qualquer não consegue reunir forças suficientes para realizar as atividades simples do dia-a-dia. Escrevo para aquela adolescente insatisfeita consigo mesma que nunca teve um relacionamento amoroso porque não entende como esse mundo funciona ou porque nunca lhe permitiram descobrir a própria sexualidade; para gente com fetiches que não se pode confessar, divagadores sem rumo, sonhadores com desejos proibidos, irrealizáveis. Escrevo para seres humanos construtores de ruínas, irremediavelmente atraídos pela própria destruição; para aquela pessoa que todos os dias se rebate em aflições terríveis cujo motivo ela nem sabe qual é ou de onde vem. Escrevo para todos aqueles que secretamente necessitam do aconchego da noite e que precisam buscar maneiras eficazes de se proteger contra o dia.

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