sexta-feira, 9 de novembro de 2018

CONTO: NA ESCURIDÃO


NA ESCURIDÃO – Melvin Menoviks

I

Ronaldo Ortega fechou todas as janelas e cortinas de seu quarto e se certificou de que não havia nenhuma mínima frincha por ali que pudesse permitir a passagem de luz. Embora ele não fosse um vampiro – já que vampiros, assim como todas as outras coisas, simplesmente não existem –, Ronaldo não tolerava a luz solar, e mesmo luminosidade artificial não era algo que lhe agradava.

Ronaldo gostava da escuridão, e ele sabia que a escuridão também gostava dele.

A relação entre Ronaldo e a noite – e entre a noite e Ronaldo – era de amor e dependência mútua. Ele sabia muito bem que, sem a noite, ele não sobreviveria – e que, sem ele, não haveria noite: ele era a causa, o motivo e a consequência da Escuridão Noturna. O relacionamento entre eles – Ronaldo e noite, noite e Ronaldo – era recíproco e necessário como o dos animais que vivem em simbiose.

A noite que se alimentava de Ronaldo e que também lhe servia de alimento não era aquela noite perfumada que revela maravilhas sob o brilho do luar, que afaga os amantes, inspira os artistas e sugere mágicos sentidos ocultos para a existência. Esse tipo de noite, bela e idealizada, só existe na imaginação fútil dos poetas – esses tolos românticos e ociosos que só sabem viver de ilusão em ilusão, de mentira em mentira, de delírio fugaz em delírio fugaz. A noite de Ronaldo era a noite verdadeira: aquela das Trevas Absolutas, da Negridão Infinita, do Reino Supremo da Escuridão-que-Tudo-Devora-e-Tudo-Apaga.

A noite de Ronaldo era a noite da alma, onde não há sonhos nem vida nem poesia nem nada. A noite de Ronaldo era como a da morte: fria, vazia, sombria e terrível.

Outra palavra que Ronaldo usava para se referir a essa noite era “Realidade”.

E, para provar a todos que ele estava certo e que a sua noite era a única verdade permanente em todo o universo, só havia um meio: o homicídio.

II

A verdade foi revelada a Ronaldo Ortega através de um trecho de um livro que ele havia lido por acaso enquanto esperava o metrô.

Era madrugada. Fazia frio. A estação estava vazia. Vapores emanavam dos dutos de ventilação como se fossem a materialização dos fantasmas de sua solitude. Um jornal era arrastado pelo vento frio e o guincho metálico dos freios de algum veículo era vagamente audível à distância. Fora isso e um leve gemido do vento lamurioso, a estação deserta estava em completo silêncio. À exceção de Ronaldo, nenhuma alma viva perambulava por ali.

Do outro lado dos trilhos, uma luz acendia e apagava de modo intermitente, e da lâmpada danificada saltavam compridas faíscas incandescentes.

No banco em que ele aguardava o transporte público repousava, abandonado, um livro de capa preta cujo estranho título estava escrito em letras brancas, grandes e garrafais, fendido por riscos que pareciam ser vários rasgos feitos a navalha.

Em verdade, Ronaldo não gostava de ler. Antes era diferente, mas agora, aos quarenta e sete anos, ele sentia repulsa por livros. A situação peculiar que o colocara em contato com esse volume misterioso, no entanto, foi suficiente para fazê-lo abrir aquele livro perdido. E a leitura do livro perdido foi suficiente para fazê-lo, depois de tantas décadas, encontrar a verdade que sempre estivera latente dentro do seu coração angustiado, remexendo-se lá dentro e espetando-o para ser reconhecida: uma verdade que era como uma semente espinhosa aguardando para se tornar flor – fúnebre flor a marcar o início do fim.

O livro era “Tenebre”, de Peter Neal, um escritor norte-americano de romances populares que de vez em quando aparecia na televisão com seu inesgotável arsenal de frases de efeito sínicas sobre sangue, violência e os perigos da vida urbana no mundo moderno.

O trecho que havia despertado Ronaldo de súbito para a verdade e que ficou gravado em sua mente da mesma maneira que a saliência de um ferro em brasa teria ficado na pele era o seguinte:

O impulso se tornou irresistível. Só havia uma resposta para a fúria que o torturava, e por isso ele deu seu primeiro passo rumo à evolução. Ele quebrou um dos maiores tabus da sociedade e não sentiu culpa, nem ansiedade, nem medo, mas liberdade. Cada obstáculo humano, cada humilhação que lhe barrava o caminho podia ser varrida por um simples ato de aniquilação: o homicídio.”

Ler aquela frase lhe provocou uma sensação indescritível. Sentindo a alma se expandir para fora do corpo da mesma maneira que os santos e mártires devem ter sentido ao entrar em contato com a divindade, Ronaldo finalmente compreendeu, com clareza repentina, todos os motores que regem a realidade da existência humana: o vazio, a nulidade, a indiferença brutal, o nada absoluto, a insignificância completa.

Inquebrantavelmente ciente da natureza tragicômica da condição humana, experimentando o âmago do seu ser compreender, enfim, o caráter miseravelmente ridículo da humanidade, Ronaldo sentiu ruírem em definitivo todas as pífias convicções morais e religiosas que seus pais lhe impuseram na infância e que, em última análise, só lhe fizeram sofrer com submissões e humilhações intermináveis. Na escola, na igreja, na repartição pública onde ele trabalhava: sempre tinha de ajoelhar, abaixar a cabeça e permitir que gente mais poderosa cuspisse nele com ordens e mais ordens e mais ordens. E tudo isso sem reclamar e sem questionar, apenas aceitando e pedindo perdão por erros e pecados que ele nem sabia se tinha cometido.

Mas então ele percebeu como o mundo realmente funciona: só se libertam de verdade aqueles que têm coragem de ir além, de quebrar barreiras e romper fronteiras. Vence aquele que subjuga o inimigo da forma mais cruel, intransigente e definitiva. A sociedade nos obrigada a destruir o inimigo para poder sobreviver.

E o inimigo de Ronaldo não era outro senão a própria sociedade.

III

Naquela madrugada, em deleite quase sexual com a epifania que tivera, Ronaldo ficou tão extasiado que quase perdeu o metrô, imerso que estava em reflexões complexas a respeito do vago sentido da vida e das relações bobas entre as pessoas, que mais lhe pareciam marionetes estúpidas vagando às cegas em um palco risível de caos e aleatoriedade.

Logo no dia seguinte, Ronaldo passou a arquitetar mentalmente o plano que ele deveria colocar em prática para expressar seu desprezo pela sociedade: no quarto escuro por completo, com as luzes apagadas e as cortinas cerradas, engendrou as diretrizes gerais para provar ao mundo a qualidade insignificante de sua existência.

Matar uma pessoa a esmo, escolhida de forma aleatória, seria uma boa maneira de comprovar que nenhuma vida significa coisa alguma, mas isso ainda lhe parecia uma atitude demasiado amadora: ele precisava de uma ação mais contundente, de um impacto mais arrebatador, de uma maldade ainda mais irreversível.

Uma semana depois, esperando o sinal abrir para passar pela faixa de pedestres quando voltava do serviço, Ronaldo viu uma mãe puxar a filha desatenta que ia atravessando a rua sem olhar se vinha carro.

 Preste atenção, Cíntia – gritou a mãe, assustada com a fina que um veículo tirou da garota e apertando com força a filha contra seu peito arquejante de emoção. – Você tem que ver se não vem carro, minha filha. Imagine se um desses motoristas lunáticos te atropela! Eu não sei o que eu faria! Você é tudo na minha vida!

Aquilo foi o bastante. Estava escolhida. A vítima seria Cíntia. Uma criança de seis ou sete anos escolhida ao acaso e que, como espécime randômico, representava toda a sociedade.

Mais do que a sociedade, Cíntia, com seu jeitinho inocente e docemente destrambelhado, representava com perfeição toda a esperança que a sociedade ingenuamente nutria para o futuro.

Era a vítima perfeita. O símbolo ideal.

Ronaldo Ortega iria mostrar para toda a sociedade que no futuro só existe uma verdade a nos aguardar: a Escuridão-que-Tudo-Devora-e-Tudo-Apaga.

IV

A Escuridão-que-Tudo-Devora-e-Tudo-Apaga estava por vir.

Só existe a noite.

Só existe o escuro.

Só existe a morte.

Nada mais importa. Nada mais existe.

Ronaldo Ortega fechou todas as janelas e cortinas de seu quarto e se certificou de que não havia nenhuma mínima frincha por ali que pudesse permitir a passagem de luz.

Cíntia, amordaçada e com os membros amarrados dentro do quarto escuro, jogada no chão, gemia em terror e tremia de medo e frio.

Ronaldo afiava pacientemente uma navalha. A escuridão lhe determinava que ele fizesse aquilo.

Um não via o outro, ali no breu total.

Enquanto esfregava o fio da navalha em uma lima para deixá-lo impecavelmente afiado, Ronaldo pensava no livro que mudara sua vida.

Haveria algum significado naquele achado? Haveria algum significado em Tenebre?

Impossível. Encontrar o livro havia sido apenas coincidência. Nada tem significado. Nada pode ter significado. No mundo só há caos e aleatoriedade. A vida não passa de um fragmento parasitário passageiro a ser dissolvido no organismo perfeito, infinito e imutável que é a Morte.

Tenebre. Esse era o título do livro. A contracapa dizia que aquela palavra significa “escuridão”, em latim.

Ronaldo não sabia latim. Ronaldo não gostava de letras. Ele havia gostado na adolescência, quando escrevera centenas de páginas de um longo romance que ninguém nunca lera, mas não gostava mais.

Que sentido havia em escrever se as pessoas nunca liam? Por aí só existem escritores aproveitadores e editores charlatões, nenhum leitor de qualidade. Assim como toda a vida, o mercado literário é vil e asqueroso.

Ronaldo não escrevia mais. A obra que ele vai deixar para a humanidade não será mais literária; será a que ele aprendeu naquela noite no metrô: será a morte, o homicídio. A mais elevada das formas de arte, enfim. A aniquilação total. A niilificação completa. A transcendência absoluta. A pura e irreversível Morte.

E agora, com Cíntia, ele estava prestes a criar sua primeira obra. Aquela que viria a ser sua obra-prima.

Ronaldo raspou o polegar na navalha e considerou que ela já estava afiada o bastante. Levantou-se e caminhou em direção à menina chorosa.

Como a escuridão era impenetrável, ela não conseguia ver o assassino, mas sentia sua presença. Revirando-se pelo chão e esfregando o ombro na bochecha, Cíntia conseguiu remover a mordaça, mas não as cordas que imobilizavam seus braços e pernas para trás.

Com a boca livre, a menina, embora prestes a ser assassinada, não gritou por socorro, pois não tinha medo de morrer.

O que ela disse, engasgando em prantos infantis, foi “por favor, acenda a luz”, pois tinha medo do escuro.

Na manhã seguinte, quando um transeunte atraído por gritos arrombou a porta do apartamento e entrou no quarto, ele não conseguiu compreender o que viu, mas a cena lhe pareceu cheia de significados profundos: havia uma poça de sangue enorme, crescente; sobre ela, um homem pálido com a garganta cortada; mais ao lado, uma menininha amarrada que, com olhos lacrimejantes, mas agradecidos e esperançosos, olhava fixamente em direção à lâmpada acesa.

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